José Valmir Silva de Souza assinou a sua demissão da Paquetá Calçados. Com 16 anos servindo de motorista à empresa, ele se viu "sem saída". "Os 16 anos não são 16 dias, não. Assinei minha rescisão sem saber quando eu vou receber um centavo. Aqui nessa cidade que eu moro, Pentecoste, a empresa que tinha era essa, a Paquetá.”

Com um misto de sentimentos de impotência e tristeza, o homem afirma que no último processo de demissão em massa 900 funcionários foram dispensados e, mesmo sendo motorista, precisou ajudar a separar as documentações dos colegas para o desligamento.

"Foi muito triste. Tinha pai de família com 20 anos, 15 anos, 10 anos, de empresa, e todos saíram do mesmo jeito, com uma mão na frente e outra atrás. Sem receber nada. Na Justiça, só Deus sabe quando e como vamos receber".

José Valmir de Souza ficou inconformado ao saber que não teria rescisão e nem FGTS para receber
Legenda: José Valmir de Souza ficou inconformado ao saber que não teria rescisão e nem FGTS para receber
Foto: Ismael Soares

Souza revela que a maioria das pessoas que ele conhece e que trabalhavam no local, hoje está passando por dificuldades financeiras, assim como a economia da cidade. "Já está na hora de correrem atrás e trazerem outra empresa para cá. A cidade precisa, o povo precisa.”

Já sobre a sua situação financeira, o trabalhador se diz "atolado até o pescoço”. "A gente para de trabalhar, para de receber, mas não deixa de chegar o papel da água, o papel da luz, o mercantil. Estou desabafando aqui, mas como eu tem muitos pais de família que tinham vontade de estar aqui falando isso que eu estou falando. É uma tristeza. Tá todo mundo aí com a mão na cabeça, sem saber o que fazer. É 8 mil, 10 mil, 15 mil (reais de direitos rescisórios) só no papel. No bolso, nem esperança".

Ao todo, a Paquetá  demitiu 1.938 pessoas somadas as unidades de Pentecostes, Apuiarés e Irauçuba, entre os meses de novembro de 2023 e janeiro de 2024. O maior número por unidade ocorreu em Pentecoste, com 900 desligamentos em novembro do ano passado. Em segundo lugar vem Itapajé, com 600 colaboradores demitidos em janeiro deste ano. O mês de dezembro foi marcado pelo fechamento das unidades de Apuiarés e Irauçuba, com 300 e 138 desligamentos, respectivamente. A empresa afirmou aos demitidos que irá pagar as rescisões, mas que não sabe quando.

Conforme o Ministério Público do Trabalho no Ceará (MPT-CE), por meio de sua assessoria de comunicação, há procedimento contra a Paquetá no órgão, porém não é possível passar detalhes uma vez que a investigação ainda está em curso e não há previsão de duração do processo. O MPTC-CE orienta os trabalhadores que se sentirem lesados a procurar o sindicato da categoria para um possível ajuizamento de ação. 

Documento recebido por funcionários no momento da demissão comunica extinção da unidade fabril
Legenda: Documento recebido por funcionários no momento da demissão comunica extinção da unidade fabril
Foto: Ismael Soares

Com o Layoff, trabalhadores ficaram sem seguro desemprego

Nove anos como revisora da Paquetá, Rita de Cássia, 28 anos, afirma que a maioria dos funcionários “foi enganada com o estabelecimento do layoff”, no final do primeiro semestre de 2023. Isso porque com a demissão, logo após o término do layoff, os trabalhadores também não possuem o direito de receber o seguro-desemprego.

"Até agora não recebemos nada. Só recebeu algum dinheiro quem tinha FGTS de 2019 para trás, quem tinha para a frente não recebeu nada. Nem rescisão, nem o mês de novembro, que era dispensa remunerada, nem o FGTS que eles pararam de depositar (em 2019)", conta Rita.

Ex-funcionários relatam que estão sem receber direitos trabalhistas e preocupados com  falta de novos negócios na cidade
Legenda: Ex-funcionários relatam que estão sem receber direitos trabalhistas e preocupados com falta de novos negócios na cidade
Foto: Ismael Soares

Ela ainda lembra que muitos funcionários receberam apenas uma parcela que o governo disponibilizou do Seguro Desemprego. “Isso foi não ficarmos sem nada, já que o layoff era o seguro, mas ninguém da empresa explicou isso antes."

Rita está vivendo de bicos e diz que está muito difícil pagar as contas no final do mês. "O que aparece, eu faço. Restaurante, lanchonete, mas tá difícil. A gente passou 2023 inteiro em casa. A gente trabalhou só até março e muito mal. Desde lá, se tivessem se mobilizado para trazer outra fábrica, talvez não tivesse tanta gente desempregada".

A mulher ainda reforça que muito dos seus colegas moram no interior da cidade e que com “pouco estudo, não consegue emprego fácil”. “Nem na roça tá fácil de trabalhar, porque não chove, como é que vai plantar?"

Os funcionários ainda alegam que pessoas da gestão e gerência que sabiam a real situação da empresa, foram saindo gradativamente, durante 2023, antes da demissão em massa. "No final ficou só a gente, que não tinha o que fazer, que não tinha condições de pedir as contas”.

Movimentação é de retirada de maquinário na ex-unidade da Paquetá em Pentecoste
Legenda: Movimentação é de retirada de maquinário na ex-unidade da Paquetá em Pentecoste
Foto: Ismael Soares

Entenda os motivos

A chefe do Setor de Benefícios da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Ceará, Rosemary Dias Dieb, explica que o que foi chamado de layoff, trata-se da suspensão do contrato de trabalho. A empresa pode paralisar as atividades dos empregados por no mínimo dois meses e no máximo cinco meses.

Neste período, o trabalhador fica recebendo uma bolsa de qualificação profissional, instituída pela Lei do Seguro-Desemprego. Ao final do layoff, a empresa não pode demitir os funcionários pelo período de até 90 dias. Porém, não foi isso que ocorreu no caso da Paquetá.

“Além disso, a legislação prevê que o benefício do seguro desemprego será concedido a cada período aquisitivo de 16 meses. Portanto, se houver demissão após recebimento das parcelas pela bolsa de qualificação do Layoff, o trabalhador só receberá saldo de parcelas ou parcela complementar caso houver”, comenta Rosemary.

DelRio pode amenizar crise com absorção de 250 vagas para costureiros

Em janeiro, a DelRio, especializada em moda íntima, iniciou negociações com a Prefeitura de Pentecoste para assumir um dos galpões deixados pela Paquetá na cidade. Conforme a empresa, é avaliada "uma possibilidade de expansão, mas nada confirmado ainda".

A não confirmação do interesse pela fábrica é algo que chateou os governantes do município, como afirmou a secretária de Governo de Pentecoste, Erika Pinho. Na conversa com a prefeitura, a DelRio havia manifestado interesse em assumir um dos quatro galpões do complexo fabril da cidade, gerando 250 empregos diretos, na sua maioria para costureiros. 

A secretária ainda explica que as negociações tanto com a DelRio quanto com outras empresas são realizadas entre os interessados e a Agência de Desenvolvimento do Estado do Ceará (Adece), que é a proprietária dos galpões.

Como executora e operacionalizadora da política do desenvolvimento e fomento dos mais diversos setores da economia cearense, a Adece afirma que após o anúncio de fechamento das unidades da Paquetá, com o intuito de solucionar as demandas de cada um dos municípios, está trabalhando de forma individualizada, em parceria com a Secretaria do Desenvolvimento Econômico (SDE) e Prefeituras.

Município possui outra fábrica menor de calçados que não consegue absorver todos os trabalhadores demitidos pela Paquetá
Legenda: Município possui outra fábrica menor de calçados que não consegue absorver todos os trabalhadores demitidos pela Paquetá
Foto: Ismael Soares

Por meio de nota, o órgão diz que, "em Pentecoste, duas empresas demonstram interesse atualmente e as negociações estão sendo realizadas".

Em apuração realizada pela reportagem junto a fontes ligadas à Prefeitura de Pentecoste, além da Del Rio, marcas de outros setores estão nas tratativas, dentre elas a Valenti Calçados. A empresa calçadista — mesmo ramo da Paquetá — já tem fábricas na cidade e, em setembro de 2023, anunciou que expandiria as operações. Até então, eram empregados 900 funcionários, e a expectativa era de, em 18 meses, receber mais 600 operários, totalizando 1,5 mil trabalhadores apenas em Pentecoste.

Situação da Paquetá é caso isolado

Consultor do mercado coureiro-calçadista, Luís Coelho, afirma que os problemas financeiros da Paquetá não são um reflexo do setor nacional. Ele lembra que a empresa vem apresentando dificuldades financeiras ao longo dos últimos anos, e não consegue sustentar a sua operação do tamanho que estava. “Então, ela precisa reduzir para chegar ao tamanho que ela consegue se manter com estabilidade”.

Ele usa como exemplo uma empresa do Rio Grande do Sul para a qual prestou assessoria, com cerca de 60 anos de fundação, que em 2022 bateu o recorde de faturamento e em 2023 ela superou o resultado de 2022. “Então, as empresas que estão financeiramente bem, estão navegando em mar tranquilo, porque enquanto tivermos uma população crescente, que usa sapatos, vamos precisar produzir para vender”.

“Como o Brasil é um país que tem uma relativa proteção das importações, principalmente da Ásia, o qual são os nossos maiores competidores, os mais agressivos, a gente vai continuar fazendo muito sapato aqui no Brasil e vendendo”, reforça Coelho. 

O especialista ainda reforça que a indústria brasileira é “muito forte e preparada tecnologicamente, não só atuando no Brasil como fora dele, exportando para mais de 150 países”. “Na América Latina toda, incluindo o México, o Brasil é líder em termos de produção e tecnologia. Então, nossas indústrias, ainda por muito tempo, vão produzir calçados”.

Como está o setor coureiro-calçadista no Brasil

No ano de 2023, o setor coureiro-calçadista no Brasil apresentou um comportamento muito diferente do que se vinha observando nos dois anos anteriores. Segundo a economista e coordenadora de Inteligência de Mercado da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), Priscila Linck com o término do período da pandemia, se teve um crescimento muito puxado por exportações. 

"O Brasil ganhou muito mercado no setor calçadista externo, em termos de demanda dos países, principalmente, aqui na América, considerando os Estados Unidos e também os países latino-americanos em função da própria redução da inserção asiática no mercado internacional que ainda vinha com algumas políticas mais restritas em relação à Covid. Além disso, com o encarecimento do frete internacional, o produto asiático se tornou menos competitivo aqui na América e o Brasil ganhou muita oportunidade."

No ano passado, porém, se observa um processo de retração das exportações com queda de 17% em volume. "De certa forma essa queda era esperada, porque esse padrão de crescimento de 2022 era insustentável".

Já no mercado nacional, o setor passou por um processo gradual de recuperação no consumo, acumulando um crescimento em volume de 2,2% no último ano. "É um crescimento lento, ainda faz com que o setor não esteja no patamar prévio pandemia, então é um crescimento abaixo que mantém o consumo abaixo de 2019, mas é um movimento gradual de recuperação". 

"Qual é a questão crucial em termos de impacto quando a gente fala de indústria calçadista, olhando para os mercados interno e externo, a nossa produção acumulou uma queda de 1,2% em 2023, com relação a 2022, e com relação a 2019, a queda é de quase 7%. Assim, o que ocorreu foi um movimento de interrupção da recuperação do setor".

Ela reforça, também, que no mesmo período houve aumento de volume de importações de quase 10%, demonstrando que o consumo do mercado interno foi puxado pelas importações, principalmente do mercado asiático.

A Abicalçados trabalha com a perspectiva para este ano de um crescimento da produção que deve ser em torno de 1,5% a 2,8% de crescimento frente ao ano de 2023.

A entidade representativa do setor não comenta casos isolados, como o da Paquetá, mas o que se sabe é que as unidades da empresa gaúcha aqui no Ceará tinha como grande volume de trabalho sapatos femininos de couro para exportação e sapatos esportivos, além da sua marca própria Capodarte. Assim, com relação a estes tipos específicos de produtos, Priscila afirma que o Brasil é reconhecido no mercado norte-americano, principalmente pela fabricação do sapato em couro e com valor agregado, como os costurados à mão, que antes da crise seriam o carro-chefe da Paquetá na unidade de Uruburetama - que teve a mão-de-obra absorvida pela Arezzo.