Elo entre sobra e falta: projetos evitam desperdício e distribuem alimentos para combater fome no CE
Pouco depois das 11h, a fila começa a se formar. De crianças a idosos, dezenas chegam com sacolas vazias nas mãos: as quais, naquele dia, voltarão para casa com peixes e melões. Os alimentos iriam para o lixo, mas foram doados por empresas e tiveram o destino desviado aos pratos de pessoas em vulnerabilidade social na Grande Fortaleza, Ceará.
O cenário se repete toda semana na Cozinha Solidária Maria Sofia, no município de Maracanaú, na Região Metropolitana, um dos projetos que recebem os donativos arrecadados pelo Mesa Brasil – programa de segurança alimentar e nutricional do Serviço Social do Comércio (Sesc) que evita o desperdício de comida e atua no combate à fome no Estado.
No ano em que o Brasil saiu do Mapa da Fome, o Diário do Nordeste mostra como é desenhado esse elo entre onde sobra e onde falta alimento, de onde saem e para onde vão as doações, e quais os impactos do trabalho de quem doa tempo e insumos para garantir acesso ao direito básico de uma alimentação digna.
Por dia, centenas de quilos de alimentos são descartados por centrais de abastecimento (Ceasa), supermercados, indústrias e produtores rurais no Ceará. Parte deles é resgatada e recolhida por unidades do Sesc Mesa Brasil, que realizam uma triagem do que está próprio para consumo, formam bancos de alimentos e os distribuem a entidades sociais.
empresas doadoras são cadastradas no Sesc Mesa Brasil no Ceará. A expansão possibilita ampliar também o número de famílias beneficiadas nas 153 cidades atendidas.
Só no primeiro semestre de 2025, cerca de 2,3 mil toneladas de comida foram entregues às 662 instituições beneficiadas pelo programa. São insumos de hortifruti, laticínios, cereais e até proteínas que não estão mais próprios para venda, mas podem ser consumidos com segurança.
Evitar o desperdício é urgente num contexto em que ter como certas pelo menos as três refeições principais do dia ainda é distante para milhares de famílias cearenses – como a da jovem Isabele Ingrid, de 26 anos.
Às vezes a gente deixa de comer uma carne ou uma mistura porque é caro. Aqui todos os dias tem a mistura, o feijão que é muito bom pra saúde. Tem as frutas, o peixe. Não me preocupo mais com essa refeição que já é garantida. Antes era bem difícil.
Ela e as três filhas, de 2, 4 e 8 anos de idade, formam uma das 72 famílias cadastradas para receber os alimentos doados na Cozinha Solidária Maria Sofia, vinculada ao Instituto Paju, uma organização não-governamental que atua na Região Metropolitana de Fortaleza.
“Tem dia que tem fruta, leite, iogurte, biscoito… Tá com uns dois meses que eu recebo, porque tava na necessidade. Sou só eu e as crianças, e recebo só o Bolsa Família. Já tirei da minha boca pra deixar pra elas muitas vezes. É muito difícil ter todo dia pra dar”, relata, com a voz embargada, enquanto monta “quentinhas” como voluntária na cozinha.
Além das doações que vêm do Mesa, Isabele recebe quatro dos 100 almoços distribuídos diariamente na instituição social. Parte dos ingredientes vem do Programa Ceará Sem Fome, do Governo do Estado, e outra parcela – como folhas, frutas e verduras – é garantida pelo banco de alimentos do Sesc.
“Ajuda muito, porque assim me preocupo só com o jantar. Em casa, teve dias que eu tinha só arroz e feijão, não tinha mistura. A gente se vira com uma salsicha, uma coisa, mas pra criança… Não dá. Já aqui todos os dias tem mistura”, comemora a jovem, que auxilia nos trabalhos “como forma de agradecer”.
A gratidão é endereçada principalmente à figura inspiradora que conduz os trabalhos: a aposentada Iara Maria Lima, 65, coordenadora, cozinheira e “faz-tudo” do Instituto Paju. É ela que faz desde o recolhimento das doações na sede do Mesa Brasil no bairro Ancuri, em Fortaleza, até a entrega às famílias na área da casa-ONG que aluga com o próprio dinheiro.
O que a gente sente mais é a alegria na hora de receber o alimento. No meio de tanta fome e tanta miséria, dá pra saciar um pouco cada família. Quando eu ligo e digo ‘gente, hoje tem fruta!’, comemoram. Se é dia de peixe, vibram porque vão comer peixada.
“Já recebemos as doações há mais de dois anos. Antes, a gente pedia nas casas, nos comércios locais, na Ceasa. Tava sempre atrás de parcerias pra poder suprir a necessidade dos mais carentes. Agora é garantido”, e sorri sempre, como se não houvesse outra expressão possível ao rosto.
Dona Iara é figura conhecida e querida tanto na comunidade como no centro de distribuição do Mesa Brasil, e reconhece que o repasse é, para muita gente, a única oportunidade de consumir frutas, laticínios e diversos itens que não cabem nos curtos orçamentos familiares.
“Quando doamos as frutas, eles ensinam até a gente a fazer os sucos que tomam. Quando a gente recebe o 'danone', é uma festa pras crianças. É uma alegria pra eles e, mais ainda, pra mim”, garante Iara, que dedica todo o tempo do dia ao voluntariado.
No dia da nossa visita à cozinha solidária, os quilos de peixes doados por um produtor local ao Mesa Brasil e repassados ao Instituto Paju saíam do isopor às sacolas direto pelas mãos enluvadas da voluntária.
Comer, e comer bem
A insegurança alimentar é classificada em três níveis, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): leve, quando a qualidade da alimentação está comprometida e existe a preocupação quanto ao acesso futuro; moderada, quando há quantidade restrita de alimentos; ou grave, a fome, a privação máxima.
Relatório das Nações Unidas (ONU) sobre o Estado da Insegurança Alimentar Mundial de 2023 atestou que 14,7 milhões de brasileiros deixaram de passar fome em 2023.
A fome ainda assola a parcela mais vulnerável da população brasileira, e afetava mais de 206 mil lares cearenses, em 2023, segundo o IBGE. Mas tem retrocedido.
Em julho deste ano, o Brasil saiu do Mapa da Fome, após seis anos figurando na lista de países com mais de 2,5% da população com falta de acesso a comida suficiente. O resultado considera a quantidade de alimentos disponíveis no Brasil, o consumo pela população e a capacidade de aquisição pelas pessoas, entre os anos de 2022 e 2024.
Como questão de saúde pública, a redução da insegurança alimentar também aparece nos atendimentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2020, somente 31% dos adultos cearenses acompanhados faziam pelo menos as três principais refeições do dia.
Entre os adolescentes, menos da metade tinha acesso aos três pratos; e considerando só crianças de 5 a 9 anos, cerca de 40% acessavam menos de três refeições diárias. Os dados são do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan).
Cinco anos depois, o cenário é distinto. Em 2025, 91% dos adultos cearenses consultados realizam, no mínimo, três refeições diárias. Entre adolescentes, são 88% com acesso; e das crianças de 5 a 9 anos, 90% comem, no mínimo, em três momentos do dia.
Romilso Lopes, nutricionista que atua no Mesa Brasil do Ancuri, destaca que iniciativas de bancos de alimentos, com foco na redução do desperdício, são fundamentais para mitigar os efeitos da desigualdade de acesso à comida no Ceará e no Brasil.
“Pensamos que a fome é distante da gente, mas é uma realidade próxima, que atormenta muita gente. Existem muitos cearenses que não têm acesso à alimentação, e o Mesa Brasil chega pra minimizar isso. Reduzir a fome”, pontua, destacando que segurança alimentar não é só sobre ter o que comer.
A nutricionista Lidiane Fernandes, especialista em Saúde Pública e coordenadora do Sesc Mesa Brasil no Ceará, acrescenta que o acesso à alimentação é afetado por fatores como intempéries climáticas, preço dos alimentos e desigualdade social, fazendo com que, para muitos, reste a opção de consumir ultraprocessados.
“Se formos comparar preços de frutas e de ultraprocessados, estes são até mais acessíveis. Contribuímos inclusive com a qualidade do que chega a essa população, para mudar a cultura alimentar e levar dignidade à mesa das pessoas”, considera.
Romilso complementa que é preciso “garantir, como direito básico, uma alimentação de qualidade, que envolva todos os tipos de nutrientes e promova o que é necessário para uma vida saudável”.
Ao lado dele, Marcelo Martins, supervisor do Mesa Ancuri, avalia que um dos maiores desafios dessa “missão” é expandir o número de empresas doadoras. O “carro-chefe”, ele ressalta, é o hortifruti, mas há grande lacuna de doações de cereais, por exemplo, itens que só chegam quando há eventos pontuais com entradas solidárias – e uma grande quantidade é descartada, já que muitas pessoas doam alimentos vencidos.
instituições em todo o Estado aguardam na fila para receber doações do Mesa Brasil, como estima a coordenadora do programa, Lidiane Fernandes.
“Muitos comerciantes preferem jogar fora do que doar, por achar que o alimento não serve. Mas uma banana que ele acha que está preta e não dá pra vender tem um aproveitamento. Além de entregar os alimentos, fazemos oficinas com as instituições ensinando como reaproveitar de forma integral”, destaca Marcelo.
As atividades socioeducativas realizadas pelo Mesa Brasil visam, além de saúde, fomentar o empreendedorismo entre os beneficiários. “Ensinamos uma receita, uma mulher aprende, faz e começa a vender o produto na comunidade. E poderíamos fazer mais, com mais doações”, inquieta-se o supervisor.
O Mesa Brasil iniciou no Ceará em 2001, sob o nome de “Amigos do Prato”. Em 2003, a nomenclatura mudou, e ano a ano o programa foi expandido da capital a pontos estratégicos do interior. Hoje, há cinco bancos de alimentos em Fortaleza, Caucaia, Iguatu, Sobral e Cariri.
A ideia é expandir, como reforça Lidiane – mas é também fortalecer as instituições beneficiadas “para que possam adquirir autonomia social e crescerem a ponto de não precisarem mais do Mesa Brasil”.
“Para além da assistência a curto prazo, desenvolve capacidades, ações de formação, sustentabilidade, nutrição e qualidade de vida, técnicas de aproveitamento integral do alimento. Pela educação, matamos a fome e curamos mazelas.”
Como doar
Empresários, comerciantes, cooperativas e produtores rurais do Ceará que quiserem integrar a “rede de solidariedade” tecida pelo Mesa Brasil devem entrar em contato pelos canais de atendimento oficiais ou pelas redes sociais.
O recolhimento e a distribuição das doações é feito pelo programa. Podem ser doados:
- Frutas, legumes e verduras;
- Frios e laticínios;
- Grãos e cereais;
- Enlatados e conservas;
- Pães e massas;
- Carnes e derivados.
É possível ainda contribuir com produtos e serviços, embalagens, combustível, utensílios culinários para as atividades formativas, transporte e até mão de obra voluntária. Uma das contrapartidas, somada aos benefícios sociais e à sustentabilidade, é a isenção de impostos como ICMS e IPI sobre os produtos doados.
Foco nos supermercados
Além do Mesa Brasil, que é uma rede de banco de alimentos, outra iniciativa privada nacional atua no Ceará para reduzir o desperdício de comida e a insegurança alimentar, por meio da mediação entre supermercados e ONGs: a plataforma Infineat.
Insumos como os próximos à data de validade, legumes com um “machucado” e frutas fora do padrão de tamanho ou estética desviam o caminho do lixo e param em instituições sociais que transformam os alimentos e os aproveitam integralmente.
A ferramenta foi criada pela foodtech Infineat, startup paulista que atua em Fortaleza desde 2023. De lá até agosto de 2025, de acordo com a empresa, foram “salvos” R$ 1,2 milhão em produtos não desperdiçados – que contribuíram para preparar 232 mil refeições.
A equipe busca supermercados e lojas interessados em participar, insere na plataforma, profissionaliza o processo de doação dos produtos excedentes – por meio de pesagem e embalagem – e seleciona as ONGs para receber os insumos.
Para Alexandre Vasserman, CEO da startup, os supermercados são “peças-chave para mudar a realidade do desperdício e da fome”. Ele avalia que, no Ceará, grandes redes já aderiram à iniciativa, mas considera o estado promissor para ampliar o serviço.
“Essa região tem um valor estratégico para o Nordeste e pode se consolidar como referência em unir eficiência do varejo com impacto social e ambiental”, pontua. Ao modificar o processo de descarte do que não é “vendável”, a logística gera, inclusive, economia de água.
Segundo a Infineat, nos cerca de dois anos de atuação no Ceará, a economia foi equivalente a 50 piscinas olímpicas, e quase 129 mil kg de CO₂ deixaram de ser emitidos.
Os impactos “invisíveis”, contudo, se somam aos sensíveis: uma das sete ONGs atendidas pelas doações de nove supermercados da capital cearense é o Instituto Casa de Gui, no bairro Joaquim Távora, que oferta atendimento multidisciplinar a crianças, jovens e adultos com deficiência.
A instituição, que vive de doações, atende cerca de 200 crianças. As frutas, verduras e legumes recebidos três vezes por semana compõem a alimentação não só delas, mas das famílias, da comunidade do entorno e dos voluntários, como pontua Narcelio Barros, presidente da ONG.
Com os donativos – que vêm também do Mesa Brasil –, a Casa de Gui monta kits para as famílias assistidas. Segundo Narcelio, o perfil delas é de “alta vulnerabilidade”, de modo que as doações são a única maneira de terem acesso a alguns itens. “São itens importantes para a alimentação, porque com o pouco valor que têm de renda já compram outra coisa.”, finaliza.