Celular proibido nas escolas do Brasil? Especialistas contestam proposta do Ministério da Educação

MEC estuda vetar das salas de aula a presença de aparelhos, que têm roubado a atenção de jovens

Escrito por
Theyse Viana e Gabriela Custódio theyse.viana@svm.com.br
(Atualizado às 14:09, em 16 de Outubro de 2024)
Jovens com celular na mão
Legenda: Segundo o ministro da Educação, Camilo Santana, o Governo Federal estuda medida para vetar o uso de aparelhos do tipo no ambiente escolar
Foto: YanLev Alexey/Shutterstock

De crianças a idosos, virou hábito diário usar celular para “tudo”, em todo lugar, inclusive nas salas de aula. O uso pelos alunos, aliás, preocupa. No Ceará, ele é proibido por lei desde 2008, e o Ministério da Educação (MEC) pretende estender o veto ao País – intenção que, para especialistas, é contestável.

Em entrevista coletiva concedida nesta sexta-feira (20), o ministro Camilo Santana defendeu que o uso individual do celular para ouros fins que não sejam pedagógicos tem sido “um prejuízo para a aprendizagem” para estudantes de todo o País. Segundo gestor, a ideia é proibir o uso dos aparelhos inclusive nos intervalos.

“O Governo Federal tem uma política de conectividade nas escolas. Nós queremos que todas as escolas tenham conectividade, tenham computador, mas para fins pedagógicos, para que essas ferramentas possam ser utilizadas para melhorar a aprendizagem dos nossos alunos. Para uso pessoal, a gente quer restringir ou em sala de aula, ou na própria escola, também nos intervalos. Isso está sendo uma discussão”, afirmou.

Professores, alunos e um profissional da saúde ouvidos pelo Diário do Nordeste reconhecem os impactos negativos do uso das telas desde cedo, mas apontam que é preciso debater sobre as possíveis — e saudáveis — formas de aliá-las ao ensino.

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O professor Pedro Monteiro, que leciona para crianças e adolescentes na rede municipal de Fortaleza, lembra que o Ceará foi pioneiro nessa proibição, mas observa que a lei foi feita no período pré-smartphones. “E, no frigir dos ovos, não pegou, porque não tem fiscalização.”

O docente lembra que, durante a pandemia de covid-19, foram distribuídos tablets para estudantes da rede pública, aparelhos “que passaram a ser utilizados em sala de aula, viraram um recurso pedagógico e didático”.

“Hoje, não acho que proibir é a forma mais adequada. Eu sou um professor muito rígido, não permito o uso de celular na sala de aula: pegou, já mando guardar. Se usar, não estará prestando atenção na aula. Mas ocasionalmente faço uso para pesquisas entre os meninos que já têm acesso”, aponta.

Proibir ou liberar?

Apesar de apontar os potenciais do uso do celular de forma mediada e assistida pelo professor, como fonte de pesquisa e expansão dos conteúdos que estão nos livros, o docente reconhece os impactos da hiperconexão “não mediada”.

“No recreio, tem um problema: crianças estão perdendo o controle do próprio corpo porque deixam de brincar para ficar jogando. E o que estão fazendo na internet a gente não sabe. Podem estar ouvindo uma música ou acessando o ‘Jogo do Tigrinho’, apostando”, lamenta.

“O corpo é importante no processo do desenvolvimento físico e cognitivo, e a brincadeira está perdendo o lugar para tela. Isso me preocupa. Em sala de aula, tem a figura do adulto mediando a relação, então ele deve conseguir fazer o controle. Mas no intervalo não”, acrescenta Pedro.

O professor reforça que é um debate complexo, e que não deve ser resumido “à proibição ou à liberação total”. “Na educação, é preciso mediações. O Governo Federal deveria entender o aparelho como mecanismo e estimular uma formação continuada de professores, modelo EaD, para utilizar essa ferramenta em sala de aula”, sugere.

Por outro lado, ele observa que “esbarramos em outra questão: as diferenças de classes sociais. Existe uma realidade muito diversa entre os estudantes. E a criança que não tem acesso ao celular? Ela fica excluída”, pondera.

A professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará (UFC), Lis de Maria Martins, levanta o questionamento sobre a dicotomia entre proibição e restrição. “Eu diria que uma alternativa seria esse buscar um uso consciente e equilibrado a partir de um trabalho dialógico e integrado com os professores, escolas e as famílias”, defende.

Com pesquisas relacionadas à produção de material didático com dispositivos móveis e  formação docente digital, entre outras temáticas, Martins afirma que é importante potencializar os equipamentos tecnológicos instalados nas escolas da rede pública de ensino, como laboratórios de informática.

“Para isso, a formação docente para e como o digital e o virtual torna-se indispensável como política educacional, movimento esse que já ocorreu em instituições da rede particular de ensino”, diz.

O médico João Borges, presidente da Sociedade Cearense de Pediatria (Socep), afirma que o impacto do “uso indiscriminado” de telas para o desenvolvimento cognitivo e social de crianças e adolescentes é um dos temas atualmente mais discutidos entre a categoria em reuniões e simpósios.

“Professores nos relatam que os alunos não conseguem mais ficar parados por 45 minutos, não interagem. Eles se levantam 3 a 4 vezes durante uma aula pedindo para ir ao banheiro, que é a forma de se movimentarem. Não conseguem se concentrar, existe um prejuízo cognitivo”, frisa.

O especialista em pediatria observa, por outro lado, que “a tecnologia está aí, não dá para impedirmos”. Assim, “proibir totalmente o uso de celular na escola não é a melhor saída”. João Borges opina que “é preciso racionalizar” esse uso em todos os espaços, desde a casa à sala de aula, o que exige o fortalecimento da aliança entre escola e família.

O contato de crianças com os aparelhos desde cedo e as consequências disso para o desenvolvimento sensorial, cognitivo, afetivo e espacial preocupam Lis de Maria Martins. A pesquisadora aponta que o debate sobre prejuízos e regulações também cabe à família, que deve ser alertada sobre os riscos dos celulares para crianças e jovens e regular horários de uso.

Muitas vezes, em razão das inúmeras situações da vida cotidiana, a família não consegue acompanhar os conteúdos que seus filhos e filhas acessam, nem mesmo os horários adequados. Tem sido comum os jovens passarem hora a fio nas redes e com péssimo rendimento na aprendizagem. Os vícios nas telas é bastante perigoso, mesmo porque não se sabe ao certo quem estará do outro lado.
Lis de Maria Martins
Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira da UFC

Pedro Lucas Guimarães Rodrigues, 19, estudante do 3º ano do ensino médio e vice-presidente regional da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) no Ceará, conta que a proibição do uso do celular já é uma realidade na escola em que estuda. A medida, inclusive, faz parte do regimento interno da instituição — mas não por questões pedagógicas.

“O bairro onde a escola está situada é perigoso, e alguns anos atrás, quando a galera levava celular, havia muito assalto. Até dentro da escola. Essa medida foi tomada pela direção, por segurança”, explica. Sobre a proibição total, ele diz que os estudantes da escola não concordam, uma vez que gostariam de utilizar o aparelho nos horários livres.

Ele pondera, porém, que a restrição do uso de celulares nos horários de aula, no geral, é vista de forma positiva pelos estudantes, mas deve ter concessões.

“Recebemos reclamação de que os professores não conseguem dar aula, porque o aluno está jogando, vendo vídeo, escutando música. Não levar o celular é bom por esse motivo. Mas não levar o celular nas escolas de tempo integral é outra história, porque é o dia todo”, complementa.

O professor Mauricio Manoel, secretário de Assuntos Jurídicos do Sindicato de Servidores Estaduais da Educação (Apeoc), avalia que “ainda não há como mensurar se a proibição será eficaz ou não, pois não sabemos de que forma ela se dará”.

Assim, ele defende que “professores, gestores, pensadores da educação e do aprendizado, profissionais de tecnologia e demais partes possam contribuir com o debate”, já que “a tecnologia está estabelecida no âmbito educacional, mas não substitui o professor e precisa ser muito bem pensada dentro das práticas pedagógicas”.

Ele reforça que “sem que haja um direcionamento pedagógico, pode haver inúmeros prejuízos ao aprendizado, à atenção e até mesmo à segurança de alunos e professores”, e analisa que “a cultura digital do adolescente e das crianças ainda é muito ligada ao universo do entretenimento e demora um tempo para conscientizá-los de que é necessário cuidado quanto a este uso”.

“A tecnologia tem grande potencial social e pedagógico para ajudar a formar jovens autônomos, conscientes e conectados, que sejam protagonistas de suas realidades. E, claro, a escola não está dissociada desse processo. O telefone é um recurso importante que deve ser explorado como uma parte do processo de ensino-aprendizagem, desde que nunca substitua o professor e nunca diminua a importância do ensino presencial”, finaliza.

Pesquisas na internet sobre o tema da aula, elaboração de sites e blogs, passeio por museus virtuais, incentivo à escrita e à leitura colaborativa são algumas possibilidades do uso da tecnologia na sala de aula citadas pela professora Lis de Maria Martins. “Sabe-se que, para isso, os docentes precisam estar preparados pedagogicamente para e com os usos dos celulares como ferramentas aliadas aos processos de ensinar e aprender”, complementa.

Impactos x benefícios

Dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) divulgados em 2023 mostraram que 80% dos estudantes brasileiros confessam que ficaram distraídos nas aulas pelo uso de celular e outros dispositivos.

Já o relatório de Monitoramento Global da Educação, publicado pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) no ano passado, também destacou que “a tecnologia pode ter um impacto negativo se for inadequada ou excessiva”.

“Dados de avaliações internacionais como o Pisa descobriram que a simples proximidade de um aparelho celular era capaz de distrair os estudantes e provocar um impacto negativo na aprendizagem em 14 países”, sublinha o documento.

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