Posts distorcem dados de 2019 e 2020 para negar as mais de 100 mil mortes por Covid-19

Reportagem do Projeto Comprova, que combate desinformação e conteúdos enganosos na internet

Foto: Reprodução/Comprova

São enganosos os textos que, ao comparar números de óbitos em 2019 e 2020, colocam em dúvida as mais de 106 mil mortes por covid-19 no Brasil. As postagens, que viralizaram em redes sociais como Facebook, Twitter e WhatsApp, ignoram que os dados utilizados, do Portal da Transparência do Registro Civil, estão em constante atualização e incluem a informação – mesmo que não consolidada – sobre vítimas do novo coronavírus.

Nesta sexta-feira, 14 de agosto, a ferramenta contabilizava 96.844 mortes que tiveram como causa principal a covid-19 no país. O número total de óbitos de janeiro a julho é 798.352 — 66.741 mortes a mais do que no mesmo período do ano passado. Mais uma vez, é importante reforçar que estes dados estão em constante atualização.

Outro fato desconsiderado nas postagens é que medidas como o isolamento social podem ter reduzido o número de falecimentos por outras causas em 2020, já que há menos pessoas saindo de casa. No estado de São Paulo, por exemplo, o número de mortes no trânsito de janeiro a junho caiu 11%, na comparação com o mesmo período do ano passado. De acordo com o Sistema de Informações Gerenciais de Acidentes de Trânsito de São Paulo (Infosiga), foi o menor número de óbitos desde o início da série histórica, em 2015.

Como verificamos?
O primeiro passo foi verificar os dados no Portal da Transparência do Registro Civil, plataforma virtual aberta à consulta pública. Em seguida, o Comprova entrou em contato com a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), que mantém o Portal e respondeu por e-mail alguns questionamentos sobre a atualização dos números.

Para compreender melhor os dados, a equipe entrevistou por telefone e WhatsApp Fatima Marinho, epidemiologista e consultora-sênior da organização global de saúde pública Vital Strategies, que, com pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), auxiliou a Arpen-Brasil no desenvolvimento do painel sobre causas respiratórias e total de mortes do Portal da Transparência. Também conversou por telefone com o epidemiologista Fernando Carvalho, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Para visualizar os dados, a equipe usou a ferramenta Flourish, de produção de gráficos. Por fim, o Comprova tentou contato com internautas que postaram o conteúdo e tiveram bastante viralização. Eliane Maris, que compartilhou um post no Facebook, conversou com a equipe por telefone. O responsável pela página @LuizCamargoVlog no Twitter, cujo post viralizou na rede social, foi contatado por e-mail, mas não respondeu até a publicação deste texto.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 14 de agosto de 2020.

Verificação

Atualização constante

O Comprova analisou duas versões de postagens que comparavam o número de óbitos registrados em cartórios no país em 2019 e 2020. Uma das publicações colocava lado a lado apenas mortes ocorridas em julho de cada ano; outros posts comparavam também registros de abril, maio e junho. Os números são similares aos verificados na aba “Registros” do Portal da Transparência – nessa seção, é possível acessar o número de falecimentos por causas naturais e violentas.

No entanto, nenhuma das postagens enganosas analisadas continha a ressalva de que os números do Registro Civil estão em constante atualização. Em nota, a Arpen-Brasil afirmou que o site é alimentado de “hora em hora” em dias úteis. A entidade diz que a recomendação é de que em análises dos dados disponíveis sejam considerados os números anteriores a um intervalo de 15 dias — contados retroativamente a partir do dia presente.

O Portal da Transparência informa que “a atualização pelos registros de óbitos lavrados pelos Cartórios de Registro Civil obedece a prazos legais”. Esse prazo leva em conta que “a família tem até 24 horas após o falecimento para registrar o óbito em cartório que, por sua vez, tem até cinco dias para efetuar o registro de óbito”. Considera que o cartório tem ainda oito dias para enviar o registro à Central Nacional de Informações do Registro Civil, que atualiza o portal. No total, oficialmente, são 14 dias.

A Lei de Registros Públicos prevê exceções que podem aumentar esse prazo. Como destacou a Agência Lupa, se o local da morte ficar a mais de 30 quilômetros de um cartório, a família pode registrar o falecimento em até três meses.

O que acontece na prática, como o Comprova já verificou, é que mortes ocorridas há muito mais de duas semanas continuam sendo atualizadas no sistema do Portal. Há óbitos ocorridos em 2019 que ainda estão entrando na plataforma, conforme mostra o gráfico a seguir:

 

Em nota, a Arpen-Brasil disse que “regras excepcionais, adotadas pontualmente por estados e pelo Poder Judiciário, em razão da crise de saúde pública causada pelo novo coronavírus, podem estender o prazo previsto em lei para registro de óbito e, também, influenciar os dados encontrados no Portal da Transparência”.

Análises de dados publicadas pela Folha de S.Paulo, em maio deste ano, e pelo portal Núcleo, em julho, apontam outras inconsistências nos números divulgados na plataforma. Um exemplo foi o “sumiço”, em 14 de maio, de 500 mil registros de óbitos de 2016, 2017 e 2018. A Arpen informou ao Núcleo ter removido esses dados por não estarem padronizados. Em 27 de maio, novo “sumiço”: dessa vez, de 3 milhões de óbitos, que posteriormente foram adicionados novamente à plataforma.

A Folha mostrou haver diferenças significativas na contagem de mortes entre as 518 cidades presentes na plataforma. Na comparação entre o número de óbitos de 2019 e 2020, capitais como Belém, Manaus e Porto Velho apresentaram padrão errático de registros de janeiro a abril. Em Goiânia, Campo Grande, Brasília e Cuiabá, uma expressiva diminuição no número de falecimentos em abril indicava falta de atualização dos registros.

Segundo a epidemiologista Fatima Marinho, consultora-sênior da Vital Strategies, a subnotificação também ocorre porque, “muitas vezes, as famílias deixam de fazer a certidão de óbito, principalmente em regiões mais pobres”.

Ainda de acordo com a especialista, os dados de Minas Gerais estão muito defasados no Portal da Transparência – como verificado no gráfico abaixo. Segundo ela, quando esses números forem incluídos, haverá um salto no excesso de mortes (comparação entre o número de óbitos esperado a partir de uma série histórica e a quantidade observada em um determinado período).

No gráfico, é possível identificar como o registro de mortes varia em cada estado do país. Repare que, além dos de Minas, outros dados apresentam inconsistências, como os de Rondônia.

Falsa equalização

O epidemiologista da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Fernando Carvalho reforça que os dados do Registro Civil devem ser analisados com desconfiança. “São dados que ainda não estão consolidados e estão sendo usados de forma errada”, diz ele.

De acordo com o especialista, é mais indicado utilizar os números compilados pelas secretarias estaduais de Saúde ou pelo Ministério da Saúde. Carvalho explica que esses órgãos seguem protocolos para registrar os óbitos, que normalmente passam por uma investigação rigorosa sobre suas causas.

Além da demora na contabilização dos mortos no Registro Civil, ainda há outras possíveis explicações para a diferença entre o número de falecimentos entre 2019 e 2020. Segundo o epidemiologista, as medidas adotadas no combate ao novo coronavírus podem ter impacto sobre outras mortalidades. Por exemplo, mortes causadas por acidentes de trânsito e por violência podem ter diminuído em meio às iniciativas de isolamento social. Há ainda o fato de que, com a pandemia, o número de procedimentos cirúrgicos eletivos foi reduzido.

No estado de São Paulo, por exemplo, o número de mortes no trânsito de janeiro a junho caiu 11%, na comparação com o mesmo período do ano passado. De acordo com o Sistema de Informações Gerenciais de Acidentes de Trânsito de São Paulo (Infosiga), foi o menor número de óbitos desde o início da série histórica, em 2015.

Por fim, Carvalho aponta que os registros de óbitos causados por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) e por causas indeterminadas subiram – na data da publicação deste texto, o Portal registrava 11.425 casos de SRAG de 1º de janeiro a 14 de agosto de 2020 e 932 no mesmo período do ano passado.

“Muitas pessoas não estão indo ao hospital. Pode ser que demore a ter um diagnóstico. Tem gente que morreu sem procurar serviço médico”, acrescenta.

De acordo com Fatima Marinho, há outro fator a ser considerado: todo ano há um aumento de mortes por causas naturais, devido ao envelhecimento da sociedade, mas a covid-19 já superou a mortalidade esperada para 2020. Para ilustrar, ela mostrou um gráfico produzido pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass). “Normalmente, não temos esse excesso de óbitos no Brasil. Tivemos na época do H1N1, mas foi pequeno. É algo visto em países que têm desastres naturais, como terremotos e tsunamis”, afirma. “Então, estamos atribuindo esse excesso de mortes verificado no Brasil à covid-19.”

A epidemiologista explica: “o que podemos afirmar com certeza é que o número de mortes entre 15 de março e até 26 de junho subiu 23% acima do esperado para esse período”.

Postagem
A aposentada Eliane Marins, que mora em Caçador, em Santa Catarina, repostou um conteúdo com números do Portal da Transparência, afirmando: “Não existe a menor condição de ter morrido 100 mil pessoas no Brasil pela covid-19. A menos que tenham encontrado a cura para as demais doenças. Faça sua própria pesquisa e tire suas conclusões”. Contatada pelo Comprova, ela disse que “cada um que posta a opinião de cada um”.

Questionada se não é perigoso afirmar que as mortes pelo novo coronavírus não estão ocorrendo, respondeu: “Tão maléfico é fazer sensacionalismo em cima de uma doença; é tão maléfico quanto a própria doença”.

Recentemente, Eliane postou outros conteúdos enganosos, como o que afirma que o governador de São Paulo, João Doria, teria tomado a vacina contra a covid-19 – verificado pelo Comprova como falso –, e o que informa, erroneamente, que Bill Gates disse que a vacina contra a doença altera o DNA dos imunizados para sempre.

Por que investigamos?
O Comprova investiga conteúdos suspeitos a respeito do novo coronavírus desde março deste ano, quando foi decretada pandemia. Desde então, outros conteúdos que usam os dados do Registro Civil de forma enganosa foram desmentidos. Um deles, uma publicação que distorceu dados do Portal da Transparência para alegar falsamente que a pandemia estaria em declínio e que o Brasil teria zerado “o excesso de mortes em junho”. As informações utilizadas à época, assim como agora, desconsideravam a atualização constante dos números.

Em maio, uma corrente de WhatsApp atribuiu a registros de cartórios números falsos, que buscavam negar a pandemia no Brasil. Os números verdadeiros confirmavam a gravidade da disseminação da covid-19.

Outras agências de checagem também desbancaram postagens enganosas sobre dados do Registro Civil, como Estadão Verifica, AFP, Agência Lupa e Aos Fatos.

O uso de dados públicos de forma inadequada provoca avaliações descontextualizadas e alerta sobre o riscos gerados por essas análises incoerentes e irresponsáveis. Neste momento específico de crise sanitária é mais comprometedor ainda, pois evidencia o grau de negacionismo da gravidade pandemia, o que torna os impactos da desinformação ainda mais severos e distorce a real finalidade da transparência dos dados públicos.

Além da amplificar os malefícios da desinformação, insinuar que a pandemia – que já matou mais de 106 mil pessoas apenas no Brasil – é uma farsa ou tentar diminuir seu efeito por meio de cálculos e dados imprecisos, sob o argumento de que o número de mortes não é tão elevado, é reprovável também por ser uma atitude que acarreta prejuízos humanos e sociais à coletividade.

A gravidade destes fatores leva o Comprova a averiguar conteúdos que apresentam ampla viralização nas redes sociais, a exemplo das postagens em questão, que até o dia 14 de agosto somavam mais de 12 mil interações no Facebook e Twitter, de acordo com a medição da plataforma CrowdTangle.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado de forma a induzir a uma interpretação diferente.

O Diário do Nordeste integra a coalizão de 28 veículos de comunicação para verificar informações falsas e conteúdos enganosos e combater a desinformação. Esta checagem foi realizada por Diário do Nordeste, Folha de São Paulo e Estadão.