Velho ou novo, o cangaço conta uma história universal do Nordeste

“Cangaço Novo” (Amazon Prime Vídeo) é uma das atrações mais vistas no Brasil e no mundo inteiro. Um estouro em “Oropa, França e Bahia”, canta Alceu Valença em sua nau catarineta. Mais do que nunca, vale o ditado do barbudo russo: quer ser universal, pinta o teu quintal.

Aí também valeu o sertão de Crateús impregnado na memória do paulistano Eduardo Melo, cujo pai é filho do município cearense de Tamboril, precisamente do distrito de Sucesso — bendita seja a geografia que prescreve a sina e o futuro do menino. Eduardo criou a série na companhia de Mariana Bardan, paulista do Vale do Paraíba.

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Êxito internacional, “Cangaço Novo” reacendeu as brasas dos debates e polêmicas sobre o banditismo das antigas. Aproveito e trago para a roda de conversa um Lampião de algumas delicadezas, da luxúria e de infinitas contradições. Repare.

Depois de pelejas sangrentas, com inimigos mortos a tiros de rifle ou golpes de punhal, Virgulino Ferreira da Silva, Lampião, reunia o seu bando no meio da caatinga para um baile perfumado — como ficou conhecida a festa em que o rei dos bandoleiros, ao lado de sua mulher Maria Bonita, se lambuzava do perfume francês de Fleurs d’Amour, bebia uísque White Horse, dançava xaxado e esquecia, por um momento, que era o homem mais procurado pela polícia no Brasil dos anos 1930.

O cangaceiro pernambucano comandava um grupo de cerca de 50 seguidores em aventuras pelo sertão do Nordeste. São incalculáveis o número de mortes realizadas pela turma em casarões de fazendas e invasões a pequenas cidades.

Mesmo assim, por causa de algumas ações em que Lampião distribuía moedas com os mais pobres em feiras livres do interior, permanece até hoje, no imaginário popular, a versão de um herói ao estilo Robin Hood. É com esta aura que é apresentado no livro “Bandidos”, do historiador britânico Eric Hobsbawn, por exemplo. A tese do banditismo social também vingou na literatura de cordel.

Em contraponto, o historiador — e especialista no tema — Frederico Pernambucano de Mello, autor de “Guerreiros do Sol”, afirma que Virgulino usou o cangaço como meio de vida, obtendo vantagens materiais — cita como exemplo os bilhetes que ele enviava a prefeitos, exigindo dinheiro para não invadir seus municípios. A vaidade e o consumo de produtos luxuosos em pleno sertão, como perfumes e bebidas, revelam um Lampião endinheirado, na análise do escritor.

O baile perfumado foi conhecido graças ao fotógrafo libanês Benjamin Abrahão, que obteve a permissão do cangaceiro para acompanhá-lo no estado de Sergipe. Deve-se ao estrangeiro, que havia trabalhado como secretário do Padre Cícero Romão Batista — santo popular no Nordeste —, as raras imagens com o bando em ação, em filmagens de 1936-37.

Esse material havia sido apreendido pela Ditadura do Estado Novo, nos anos 1940, e foi considerado perdido por duas décadas. Somente em 1960, deu-se o resgate. Oito anos depois, o público teve acesso no “Memória do Cangaço”, de Paulo Gil Soares, parte do projeto de documentários “Brasil Verdade”.

Nascido em 1890, em Zahlé, cidade do Líbano que pertenceu ao Império Turco-Otomano, Benjamin havia sido caixeiro viajante no interior do Nordeste nas primeiras décadas do século 20. Foi assim que conheceu e se tornou amigo do “padim Ciço”.

O ex-caixeiro viajante distribuiu fotos e reportagens sobre o rei do cangaço para jornais e revistas e ainda fez de Virgulino garoto propaganda da Cafiaspirina, um remédio para dor de cabeça. No anúncio, Lampião aparecia distribuindo a pílula para os cangaceiros, sob uma placa com o slogan “Se é Bayer, é bom”. A vida do libanês foi retratada no longa-metragem “Baile Perfumado” (1996), dos diretores pernambucanos Lírio Ferreira e Paulo Caldas.

Vera Ferreira, neta do rei do cangaço e co-autora do livro “De Virgulino a Lampião” (com Amaury Correia Araújo), contestou a imagem do avô levada ao cinema. “Tenho vários depoimentos de cangaceiros que estiveram com meu avô no sertão. Todos testemunham que bebiam cachaça e não uísque White Horse. E que ninguém se perfumava com a fragrância francesa Fleur d´Amour”, divulgou, na época do lançamento do filme.

Benjamin Abrahão foi assassinado em 7 de maio de 1938, com 42 facadas, na cidade pernambucana de Itaíba. Três hipóteses foram levantadas sobre o crime: teria sido morto por um marido ciumento, foi vítima de latrocínio ou, como nas especulações frequentes, acabou eliminado por “cabras” da Ditadura Vargas — as imagens do cangaço haviam causado muito constrangimento ao governo.

Lampião e Maria Bonita e mais nove bandoleiros foram assassinados por uma tropa policial na gruta de Angicos, em Poço Redondo (Sergipe), na madrugada do dia 28 de julho de 1938. Para que não houvesse desconfiança sobre as mortes, a polícia expôs as onze cabeças degoladas em uma escadaria na cidade de Piranhas (Alagoas). O mito do rei do cangaço era tão forte àquela altura — ele teria o dom do encantamento e da invisibilidade — que muita gente até hoje ainda não acredita que ele foi assassinado. Há uma lenda de que teria morrido de velhice, nos sertões de Minas Gerais.

Mistérios à parte, só sei que nas calçadas do interior ou nos bares das metrópoles, “Cangaço Novo” reabriu o interminável debate sobre a mitologia lampirônica. Aproveite para ver a série. Este cronista se despede por aqui, rogando aos céus e ao Padim Ciço pela segunda temporada.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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