Qual Nordeste você quer dessa vez, meu freguês?

— Meu amigo, são muitos Nordestes, qual o freguês quer dessa vez, o do litoral, o da zona da mata, o do agreste ou o do sertão semiárido? O da burguesia industrial da metrópole, da Casa-Grande decadente ou o do vaqueiro e da rezadeira? — perguntava ele, com sua risada irônica, diante dos editores paulistas que muitas vezes buscavam uma visão única e exótica que representasse a “nordestinidade”.

Este era Carlos Garcia, 87 anos, jornalista pernambucano que morreu esta semana, no Recife, vítima da Covid-19. Mal anotamos os nossos garranchos de homenagens ao mestre cearense Gilmar de Carvalho, também vítima da mesma peste, e lá se vai outro amigo essencial na maneira de pensar sobre a região e desconstruir as caricaturas e clichês.

Jornalista Carlos Garcia
Legenda: Aos 87 anos, Carlos Garcia, jornalista pernambucano, morreu esta semana, no Recife, vítima da Covid-19
Foto: Arquivo pessoal

Diretor da sucursal de “O Estado de S. Paulo” e “Jornal da Tarde” durante décadas, Garcia era sábio na arte de fugir das ciladas jornalísticas dos seus chefes do Sudeste. Dava prazer ouvi-lo nestes diálogos sobre as pautas. Quando desligava o telefone, sempre fazia um tratado para nós, repórteres em começo de trajetória naqueles anos 1980, sobre os riscos éticos e estéticos do nosso ramo profissional.

“Sem nunca ter saído da sua Recife natal, Garcia tornou-se referência nacional de bom jornalismo, um raro exemplo de dignidade no exercício da profissão de jornalista, capaz de colocar sua vida em risco para defender os princípios éticos que nortearam sua carreira e sua vida”, escreveu em seu blog o repórter Ricardo Kotscho, também da legião dos admiradores do pernambucano.

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Em 1984, Garcia nos presenteou com “O que é Nordeste Brasileiro”, um pequeno livro que fez bastante sucesso entre os leitores jovens de todo o país. Publicado na coleção “Primeiros Passos” (editora Brasiliense) , o breve ensaio contribuiu para quebrar estigmas e visões equivocadas.

O mais cruel dos meses, como dizia o poeta T.S. Eliot, abril castigou sem pena. Perder em tão curto espaço autores/pensadores como Gilmar de Carvalho e Carlos Garcia nos deixa mais melancólicos ainda no país em que o descuido virou política oficial de governo.

Aproveito o mote para recomendar, com urgência urgentíssima para quem ainda não teve a chance dessa leitura, “A invenção do Nordeste” (ed. Cortez), do professor paraibano Durval Muniz de Albuquerque Jr. É uma obra-prima. Revela como foi construída, na história e na indústria cultural, essa imagem da região na cabeça dos brasileiros — inclusive de legiões de nordestinos. Durval, caríssimo, é uma honra ser teu vizinho de coluna aqui neste mesmo jornal.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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