'Nordeste Já' foi a versão brasileira do 'We Are The World'

Legenda: Caetano Veloso e Simone na gravação de "Nordeste Já"
Foto: Reprodução

É da categoria imperdível o documentário “A noite que mudou o pop”, dirigido por Bao Nguyen, no serviço da Netflix. O filme revela os bastidores da infinita noite da gravação do hino "We Are The World", em um estúdio em Los Angeles (EUA), em 1985. Estavam lá os maiores nomes da música internacional, com exceção de Prince, que marcou touca e perdeu aquele momento extraordinário.

Composta por Lionel Richie e Michael Jackson (quer mais?), a canção virou um disco e uma fita cassete de uma música só. Tocado em emissoras de rádio do mundo inteiro, a faixa virou o maior hit de todas as galáxias, no que movimentou vendas milionárias para ajudar a salvar vidas famintas na África.

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Era tanta estrela na gravação, senhoras e senhores, que os produtores penduraram na entrada a seguinte placa de advertência: 'Deixe seu ego na porta'. Noves fora as tretas de varejo, o gênio Quincy Jones coordenou a parada com maestria. E lá se encontravam Bob Dylan, Diana Rossi, Stevie Wonder, Kenny Rogers, Cyndi Lauper, Ray Charles, Tina Turner, Bruce Springsteen, Lionel Richie, Paul Simon, Billy Joel, Michael Jackson, Willie Nelson, Al Jarreau etc etc.

Sob influência dessa ação estrangeira, o Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro mobilizou 155 artistas brasileiros no projeto “Nordeste Já”, com gravações no Multi Stúdio, na Barra da Tijuca, entre os dias 09 e 16 de maio de 1985. Naquele mesmo ano do “We Are The World”, as enchentes castigaram a região, impondo um sofrimento antes visto somente nos períodos das secas brabas.

O compacto simples (uma música de cada lado da bolacha de vinil) foi lançado na praça, com venda em lojas e distribuição como brinde a clientes das agências da Caixa Econômica Federal que realizassem depósitos acima de 10 mil cruzeiros, a moeda em voga. O meio milhão de discos evaporou em poucos dias. A renda foi destinada às vítimas da catástrofe.

No lado A, tínhamos “Chega de Mágoa”, composição coletiva iniciada na caneta e no violão de Gilberto Gil. No B, “Seca D´Água”, música feita de um poema de Patativa do Assaré sobre a “cheia” que destruiu várias cidades nordestinas. O refrão dizia tudo: “Seca sem chuva é ruim/ Mas seca d'água é pior”.

As duas canções foram interpretadas por artistas de todos os gêneros e estilos. A MPB de Chico Buarque & Caetano, o rock de Rita Lee, o soul de Tim Maia, o samba de Elza Soares, o romantismo de Simone, o forró de Luiz Gonzaga, o pop de Lulu Santos, a jovem guarda ainda vivíssima de Jerry Adriani, a bossa de Joyce e a realeza de Roberto Carlos.

O elenco nordestino no disco era de primeira, repare: Alceu Valença, Alcione, Amelinha, Belchior, Caetano Veloso, Djavan, Dory Caymmi, Ednardo, Elba Ramalho, Fausto Nilo, Geraldo Azevedo, Gereba, Gilberto Gil, Gonzagão, João do Vale, Manassés, Maria Bethânia, Moraes Moreira, Patativa do Assaré, Pepeu Gomes, Raimundo Fagner, Tânia Alves, Zé da Flauta e Zé Ramalho.

Na entrada do estúdio onde aconteceu a gravação, há 39 anos, os produtores do sindicato dos músicos não colocaram a plaquinha “Deixe o seu ego na porta”, como na versão gringa da história. Impossível, porém, não ter ocorrido alguma confusão narcísica com mais de uma centena de estrelas reunidas.

No ótimo clipe dirigido por Claudio Jardim, com exibição no “Fantástico”, vemos o maior climão de paz & amor. Fica, porém, a curiosidade sobre os bastidores.

Alguém botou boneco, deu uma alterada? Quem era o Bob Dylan do encontro? — a figura que ficou tímida, deslocada e sem jeito, como o trovador norte-americano. Algum figurão prometeu chegar e acabou se perdendo pelas noites cariocas? Podemos ter no “Nordeste já” momentos tão ricos e emocionantes como no “We Are The World”.

Quem se habilita a contar tudo isso em um documentário para a televisão brasileira? O Tim Maia, além de comparecer com a voz mais potente do Brasil, tirou alguma onda? Boto fé no síndico da música brasileira. Esse filme rende uma bela história. Quem se habilita a dirigir a parada?

P.S. Agradeço ao jornalista e DJ Camilo Rocha pelo mote dessa coluna. Foi ele o primeiro a lembrar do tema nas redes sociais.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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