Até Deus pediu licença da sua brasilidade

Legenda: Ele pode ter até sido em algum momento da história, mas deve ter pedido licença
Foto: Agência Brasil

Essa é a terra que reclama para si a nacionalidade de Deus?

Faço a pergunta amparado em um texto que o escritor e músico angolano Kalaf Epalanga publicou depois do assassinato do congolês Moïse Kabagambe, no início deste ano, na cidade do Rio de Janeiro.

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Kalaf estava ainda em choque com o brutal assassinato do irmão africano. No seu artigo na revista “Quatro Cinco Um”, ele lembrava o orgulho nacional com o clichê do Deus brasileiro. Poderia a terra daquele horror, em uma barraca de praia carioca, ser a mesma pátria que reivindica ser berço divino?

O clichê pode ter feito sentido folclórico algum dia, caro Kalaf, mas, no momento, mesmo com sua bondade infinita, duvido que Deus simpatize agora com essa nacionalidade. Não há motivo. O noticiário é constrangedor, e a frieza de quem comanda o país assombra mais ainda.

Nem mesmo a tese da “banalidade do mal” — de tão repetido o horror se naturaliza — explica o comportamento do presidente Jair Bolsonaro. É a frieza de quem se nega a pronunciar até o nome dos mortos. Não há sentimento ou empatia para dizer, pelo menos, os batismos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips?

É a mesma falta de sensibilidade de quem dizia que não era coveiro no momento mais grave da pandemia da Covid-19. É uma frieza que flerta com o sentido do perverso. Tão espantosa quanto seguirmos reivindicando para estes tristes trópicos a nacionalidade de Deus.

Ele pode ter até sido em algum momento da história, mas deve ter pedido licença. Pode até voltar para ouvir o samba novo do Chico, mas está difícil.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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