Isso aqui era um marzão só, filha, repito para Irene, na descida da Chapada do Araripe no sentido Crato/Nova Olinda. A menina de cinco anos afasta a nuvem de borboletas amarelas, característica da paisagem em dezembro, e olha desconfiada, como se fosse mais um exagero paterno. Os pterossauros gigantes sobrevoavam um lago sem fim, capricho, imito aquelas narrações do Discovery — tudo em busca do afeto e da credulidade.
— Tiranossuaro Rex, papai? — Irene ri.
E seguimos viagem para Santana do Cariri, onde outros bichões do período Cretáceo nos esperavam em plena praça, ali na esquina do Museu de Paleontologia, um dos maiores acervos do ramo nas Américas.
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Irene e o irmão Teodoro, 13, escutam a mesma história desde sempre, mas depois de tanto tempo trancados em São Paulo, SP, dessa vez a viagem fez muito mais sentido. Com um novo panorama: a mãe, a paulista Larissa Zylbersztajn, agora sabe mais sobre a região do que este cronista chapadeiro de nascença. No exato instante, a vejo entretida com “A caverna encantada — mitos e lendas do Cariri”, uma edição do “Livro de graça na praça”, projeto da prefeitura do Crato.
Pausa para um café de domingo com o mestre do couro Espedito Seleiro. Ele sobe para um almoço no Zabelê, com uma turma do Recife. Seguimos no prumo de Aratama, o jardim dos caminhos que se bifurcam, com o Assaré de Patativa de uma banda e o Potengi do artesão Françuli na linha reta. Repare como os aviões de zinco e flandre riscam os ares no desenho de um labirinto.
Ninguém há de negar que os indígenas Kariris fundaram nesta terra o centro do universo. Alemberg Quindins, gerente de cultura do Sesc Ceará, diz isso de forma bem mais bonita. Foi ele, com a arqueóloga Rosiane Limaverde, os inventores da Fundação Casa Grande, centro irradiador de iluminismos de Nova Olinda para o mundo.
É todo este mar de histórias, dona Unesco, que merece ser chamado de Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade. A candidatura é da Chapada do Araripe, o platô central na divisa do Ceará, Pernambuco, Piauí e Paraíba. Pense em um merecimento, caro Fabiano Piúba (secretário cearense de Cultura), pense em uma proposta de responsa, caríssimo conterrâneo Camilo Santana.
Aqui sob o efeito Cocoon do balneário do Caldas, ouço Luiz Gonzaga, lá de Exu, traduzir para o idioma do baião o dossiê em defesa do pleito. Dona Bárbara de Alencar — a heroína que fez do Crato uma República Independente, sob a benção de Frei Caneca — entra em campanha e aplaude. De Bodocó, Cida Pedrosa, genial e vivíssima poeta brasileira do sertão do Araripe, aciona a orquestra cosmopolita de vialejos, a maior jazz band do planeta.
Pense numa bacia cultural, como disse Gilberto Gil, ao falar sobre a chapada. Quando a pedra da Batateira desabar do seu canto, Irene, isso aqui vira tudo mar de novo. Vale a lenda dos Kariris, filha.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.