Se uma máquina pudesse captar seus pensamentos, o que ela mostraria?

Legenda: E se os médicos vissem tudo que eu estava projetando no meu cinema particular?
Foto: Pexels

Eu vi minha cabeça por dentro. Depois de exatamente trinta anos de enxaqueca, chegou a hora de fazer um exame para enxergar a movimentação interna do meu crânio e saber o que acontece na parte mais misteriosa do corpo. Recebi alguns avisos e recomendações para a hora do procedimento e o mais importante deles foi imperativo: jamais abra os olhos. 

É a mesma ordem que inicia o livro de suspense A Caixa de Pássaros, de Josh Malerman, um bom começo. Deixar os olhos completamente fechados, na prática, aguçou o impulso de imaginar aqueles minutos como cenas de uma narrativa de ficção científica. Cobaia de um experimento. Caminho sem volta.  

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A expectativa de uma aventura crescia só pra mim. Ao meu redor as pessoas estavam sérias e vivendo seu dia de trabalho normalmente. É sempre assim. Cheguei a comentar algo envolvendo as palavras ficção científica e experimento com a auxiliar prestimosa, mas ela não disse nada. Estava concentrada na missão de encontrar minha veia, furar a pele com uma agulha, encontrar o rio certo de sangue, posicionar meu corpo na máquina, tapar meus ouvidos com duas esponjas em formato de pontas dos dedos e entregar uma bomba de borracha - que eu deveria apertar caso passasse mal. 

Estou muito bem, disse a ela, esse exame é muito divertido. Não sei se ela sorriu, a essa hora a esteira com meu corpo já deslizava para dentro do túnel.  

A cabeça fica imobilizada em um capacete, que se encaixa ao túnel maior, braços e pernas presos. Como os japoneses aguentam dormir em cápsulas assim? Talvez ter um corpo de gafanhoto facilite, não é o meu caso, preciso de espaço farto. 

Eu pensava no Japão e nos livros do Murakami quando começou a zoada ritmada. Lembrei do Oliver Sacks, o neurologista que não sabia se seria médico ou escritor e decidiu ser os dois. Talvez em algum dos seus livros ele tenha mencionado os exames que fazem fotografias da cabeça. Se ele estivesse ao meu lado, iria entender a ficção que eu esboçava na minha primeira angioressonância do crânio.  

O som da máquina era uma base ritmada com precisão nos intervalos. Tenho bom ouvido. Será que um músico aqui dentro conseguiria compreender além, compor a partir dessas batidas, simular um metrônomo?  Essa profusão de pensamentos era só o começo. Do outro lado do vidro, dois profissionais acompanhavam o exame e nada diferia das salas de inquérito dos filmes americanos: os acusados de um lado, observados pelos investigadores do outro. E se a máquina pudesse captar pensamentos?  

Lá estava eu, de olhos fechados, obedecendo à segunda ordem: pense em coisas boas. Jamais abra os olhos e imagine as melhores cenas que puder. Eu caprichei, sou excelente nisso. São trinta anos de enxaqueca, mas são também quarenta e seis anos de uma vida bem vivida, eu sei o que é bom. 

Lembrei do Laboratório do Cérebro do Sidarta Ribeiro, tentando mapear os sonhos. E do filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, quando Charlie Kaufman imaginou uma máquina que apaga memórias. 

E se os médicos vissem tudo que eu estava projetando no meu cinema particular? 

Claro que não poderiam ver. Era só um exame, uma glória imensa da ciência, máquina inventada por um gênio. A sonhadora da sala era eu e durou pouco, foi rápido. Eu ficaria mais meia hora de olhos fechados, pensando nas maravilhas da vida. É por elas que desejo que meu exame esteja limpo, que o laudo diga que tenho saúde na cabeça, pois eu nunca quis tanto viver.  

Fiz meu próprio laudo: o resultado do exame é um álbum fotográfico fascinante, em tons de preto, branco, cinza, vermelho, amarelo. As veias e artérias compõem desenhos de bailarinas, árvores, mapas, veios d’água, ribeirões, rios profundos. 

Já o neurologista decifrará facilmente, sincero e honesto, usando o léxico da ciência. Vou perguntar se, por um acaso, ali também estão desenhados os sonhos, os pensamentos, o inconsciente, a coleção de palavras, a memória que define quem sou. Ele, leitor de Dostoiévski, certamente terá uma boa resposta.  

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.



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