O horror da violência contra a mulher também é perturbador em 'Mulheres Empilhadas'

A narrativa segue entre o ambiente judicial e as imagens oníricas em torno de uma lenda de proteção dos povos ancestrais

Legenda: O Brasil nasceu de uma violência e ainda continuamos nela. As mulheres tem sofrido desde então
Foto: Shutterstock

Depois de vinte e cinco anos de carreira e doze romances publicados, a escritora Patrícia Melo trocou o espaço das grandes cidades por um pequeno município do Acre como cenário da sua ficção. O tema é anunciado pelo título: Mulheres Empilhadas, uma metáfora para a imagem dos inúmeros processos de feminicídio que tramitam na Justiça brasileira.  

Uma mulher e sua vida inteira, seu passado, seu corpo, viram um calhamaço morto, um sobre o outro, à espera de uma solução que nunca chegará.  

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A média de mulheres assassinadas nesse contexto em 2021 é de quatro por dia. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou um documento alertando para o aumento do feminicídio durante a pandemia.  

Todos os dias, quatro mulheres são mortas porque um homem pensou ter direito sobre o corpo e a vida dela. Porque contrariaram esse homem em algum aspecto – o som da televisão alto demais, a comida com pouco tempero, a recusa do sexo, a suspeita de traição, o efeito do álcool ou das drogas.  

A violência é cometida por companheiros, pais, irmãos, tios, pessoas próximas, na maioria dos casos. Além disso existem os estupros seguidos de morte, praticados por desconhecidos que desejaram um corpo que não era consentido. Em todas essas situações, havia um homem imbuído do poder de matar. Muitos não se arrependem.  

O livro de Patrícia Melo nos conta tudo isso que já sabemos de uma maneira perturbadora – eis a qualidade do seu texto, da consciência literária de uma autora experiente.  

A protagonista, que não tem nome, viaja para o Acre no desejo de acompanhar os casos de violência contra mulher no contexto da fronteira, da briga pelas terras indígenas e do tráfico de drogas. A narrativa segue entre o ambiente dos processos no fórum e nas imagens oníricas em torno de uma lenda de proteção dos povos ancestrais.  

A lenda das icamiabas conta a história de uma legião de mulheres guerreiras que juntaram forças para sobreviver à violência da colonização. Elas aparecem nas crônicas dos descobrimentos da América Hispânica, no livro Macunaíma, de Mário de Andrade.  

Foi a vitória das Icamiabas contra os invasores espanhóis que batizou o Rio Amazonas – nome grego dado às mulheres guerreiras.  

Essa narrativa paralela que retoma os mitos fundadores dos povos originários, da figura da mulher como defensora da terra e dos seus próprios corpos é uma das grandes qualidades desse romance tão oportuno.  

O Brasil nasceu de uma violência e ainda continuamos nela. As mulheres tem sofrido desde então, desde os corpos violados das meninas e mulheres que moravam aqui antes das invasões, até todas nós, contemporâneas, escolarizadas, urbanas, constantemente assombradas pelo medo de andar nas ruas.  

A realidade exposta brutalmente mostra que há uma cadeia de fatos que leva ao feminicídio. A pornografia, a objetificação do corpo da mulher, a atitude dos homens que se sentem no direito de olhar e molestar um corpo sem autorização, são peças que conduzem a um universo de perversão da sexualidade – que deveria ser uma das partes mais saudáveis da vida.  

Com vinte e cinco anos de experiência no trabalho de transformar a vida real em literatura, Patrícia Melo nos lembra que essa responsabilidade também é nossa. A mudança de mentalidade é urgente. Somos fortes, descendentes das icamiabas, sustentamos o mundo, parimos o mundo e merecemos viver. É nosso direito.  



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