O celular quebrou e levou com ele memórias da vida: e agora?

O telefone na palma das mãos tem sido a segunda casa das nossas lembranças, o arquivo de uma vida, tudo concentrado em um suporte tão frágil

Legenda: A vida digital facilita muito o trabalho, aproxima as pessoas, cria possibilidades de comunicação e contato. O ruim é quando a perdemos
Foto: Pexels

Quando recebi a notícia de que tinha perdido todos os dados do meu celular, pensei no que estamos fazendo com nossa memória pessoal nesses tempos virtuais. Foram mais de vinte e cinco mil fotografias, uma agenda telefônica com centenas de contatos, muitas conversas e mensagens importantes. Todos os instrumentos que o homem inventa são extensões do próprio corpo, fazem o que não conseguimos fazer.

O telefone na palma das mãos tem sido a segunda casa das nossas lembranças, o arquivo de uma vida, tudo concentrado em um suporte tão frágil. 

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Ao saber que tudo isso foi embora, como um estalo, lembrei das agendas telefônicas de antigamente. Toda família tinha uma, de capa dura, guardada ao lado do aparelho telefônico e causava um alvoroço quando se perdia por algum motivo. Costumava ficar em cima do catálogo da companhia telefônica, aquele calhamaço em papel jornal amarelo com os números e endereços da cidade inteira, rua por rua, ou listado por sobrenome. 

Nas agendas novas, cada nome era escrito à primeira vez com a letra bonita, a mesma caneta, tudo organizado. Com o tempo, chegavam as correções com tintas de outras cores, lápis, borrões e riscos. Nem sempre era bem escrito, muitas vezes era às pressas, com o telefone preso entre a orelha e o ombro, a tampa da caneta na boca, anotando, correndo para resolver algo urgente.

Pouco a pouco a agenda ganhava a bagunça saudável das mudanças da vida. Conheço pessoas organizadas que só escreviam mesmo a lápis, justamente planejando apagar e não borrar, quando fosse necessário. E muitas guardam as suas agendas até hoje, não abrem mão de ter tudo anotado. 

Lembrei também dos álbuns de fotografia, as páginas encadernadas de papel cartão, a fina folha de papel vegetal e as lindas cantoneiras. Essas eram anteriores à minha geração - sou do tempo dos pequenos álbuns com páginas de plástico que vinham de brinde na revelação das fotos. 

Precisávamos esperar umas quarenta e oito horas para voltar à loja e receber as imagens. Nada era mais maravilhoso do que saber que o filme todo deu certo, nenhuma foto queimou e todas ficaram ótimas. 

Era bom demais usar o negativo e encomendar fotos para pessoas queridas, escrever um bilhetinho no verso, registrar a data, mandar por correio ou entregar junto com um cartão. São gestos de antigamente, mas lembrei disso tudo quando vi um ano e meio de registros apagados de repente. A estratégia de salvar os dados por segurança não foi suficiente. 

A vida digital facilita muito o trabalho, aproxima as pessoas, cria possibilidades de comunicação e contato, isso tudo é verdade. O ruim é quando a perdemos. Nesse dia em que o celular morreu e renasceu desmemoriado, agradeci aos meus cadernos, todos salvos, em segurança. Eles também não são infalíveis nem eternos, porém leais.

Por coincidência, acabou de ser lançado no Brasil o livro de uma autora japonesa, Yogo Ogawa, chamado “A polícia da memória”. É sobre uma ilha onde as pessoas vão apagando as coisas da cabeça, pouco a pouco, em uma ditadura do esquecimento. E tudo vai ficando cada dia mais triste. 

Somos feitos do que lembramos, do que guardamos ano a ano no percurso das nossas vidas. Nossa memória individual e coletiva é um tesouro que merece ser bem guardado. Como você tem colecionado os bons momentos da sua história? 

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.