Quem você era na infância? Brincava de que? Qual era a sua cor favorita? Gostava de qual desenho animado? Como era na sua escola? Quais lembranças marcaram a sua infância? Quem você se tornou hoje daria orgulho a quem você foi na infância? Em certo momento, perguntas como essas circulam em minha cabeça.
Eu fui uma criança viada. Até hoje guardo parte dela em mim. No início, não lembro de me sentir diferente dos outros. Lembro muito bem de um período da vida, não vou saber dizer exatamente qual, em que eu simplesmente era eu mesmo. Só isso. Não lembro de rótulos, caixas ou definições. Foi uma época mágica, até castrarem a minha liberdade de viver os meus desejos.
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Antes que pensem besteira, não se trata de desejos sexuais, afinal, eu era uma criança. Falo dos meus desejos de viver como eu sentia vontade, dos meus desejos de brincar de bola e de boneca, de carrinho e de elástico, de soltar raia e pular amarelinha. Falo de estar em contato com outras crianças e ser plenamente feliz nessa fase da vida que precisa tanto ser preservada, nessa fase da vida em que se constrói o adulto do futuro.
Foi mais ou menos nessa época, que eu descobri a existência do corpo humano - não com o meu próprio, mas com a estrutura que me foi imposta, repleta de micros e macro violências que ocasionaram diversos traumas e, até hoje, me são lembranças extremamente dolorosas. Memórias ruins assim são pensamentos que nos perseguem no presente e desestruturam a nossa formação, nossas relações e nossas atitudes.
Parece exagero? Deixe-me contar um caso “simples”, que aconteceu comigo. Era minha primeira semana na escola e eu estava assustado por estar em um ambiente de convivência que não era a minha casa. Tinha uma certa expectativa de ser uma experiência fantástica, de muitas amizades, de muito aprendizado, mas não foi tão encantadora assim.
Por ser uma criança afeminada, já nos primeiros dias senti olhares de julgamento e correções de comportamento sobre como sentar, como me vestir e com quem brincar, mas, pra mim, a pior parte era o banheiro da escola. Eu, simplesmente, não o frequentava. Prendia o xixi o dia inteiro e só fazia quando chegava em casa, nunca no banheiro do colégio.
Isso acontecia por dois motivos: primeiro, eu sofria bullying dos colegas que diziam para usar o banheiro feminino, porque eu era “mulherzinha”; segundo, porque um dia tentei usar o banheiro masculino no horário fora do intervalo e fui assediado. Neste segundo caso, voltei para a sala de aula tão assustado, que fiz xixi na calça e, ao invés de ser acolhido, fui duramente criticado pela professora que fez questão de me expor ao grupo para ser ridicularizado por todos os colegas que riam do “mijão”.
Sabe qual a conclusão disso? Aos 40 anos de idade, tenho sérias dificuldades em usar o banheiro público. Se estou em eventos e o banheiro não tem cabines, fico nervoso e não consigo. Se, por sorte, o banheiro está vazio e me atrevo a utilizar, mas alguém entra e pára do meu lado, fico nervoso e não consigo.
Esse é só um exemplo de como não só nossas crianças podem ser afetadas, como todo o futuro delas também. É sobre como nós, adultos, e nossas imposições são violentas. É sobre como precisamos com urgência de um olhar mais cuidadoso, mais amoroso, mais empático com as crianças, especialmente aquelas que não estão dentro do padrão que esperamos.
É preciso que tratemos nossas crianças como indivíduos em construção, que necessitam de nós para se transformarem em adultos que admiramos. É preciso reavaliar nossas próprias atitudes e expectativas, é preciso questionar porquê esperamos comportamentos maduros de crianças e relativizamos comportamentos imaturos de adultos.
Precisamos proteger nossas crianças viadas. Sofrer homofobia quando se é adulto já é péssimo, sofrer homofobia quando nem se compreende o que é sexualidade é crueldade.