O que mais pode almejar na vida um mordomo gay?

Legenda: O personagem Zaquieu, interpretado pelo multiartista João Alberto Pinheiro na primeira versão de "Pantanal"

Em 1990, quando estreou a primeira versão da novela Pantanal, na extinta Rede Manchete, um personagem chamou bastante atenção no núcleo carioca da novela de Benedito Ruy Barbosa: Zaquieu, na época, interpretado pelo multiartista João Alberto Pinheiro. O personagem deveria existir apenas em alguns capítulos, saindo da trama logo depois da família Novaes - para qual trabalhava como mordomo - que se muda do Rio de Janeiro para o Pantanal Mato-Grossense. Entretanto, a história foi para outro caminho..

A genialidade e o carisma de João Alberto fez com que o personagem caísse nas graças do público, levando Zaquieu para uma trama ainda mais envolvente. Na fazenda de José Leôncio, seu mais novo patrão no Pantanal, o mordomo virou peão e nutriu uma paixão platônica por Alcides, na primeira versão, interpretado pelo maravilhoso Ângelo Antônio.

O fato é que esse carisma de Zaquieu se deu, especialmente, por ser um personagem extremamente engraçado, quase como o alívio cômico na dramaturgia da novela. Estamos falando de um folhetim da década de 90, logo, é de se imaginar que essa comicidade se ancorava, principalmente, em piadas LGBTfóbicas, em “brincadeiras” sobre o comportamento “fora do padrão” masculino, que acabavam repercutindo com naturalidade na sociedade da época.

Agora vamos pensar em 2022. Mais de 30 anos se passaram e essa mesma sociedade se transformou. Presenciamos uma série de lutas e mudanças sociais em busca de respeito e dignidade, conquistas de direitos civis, pautas identitárias, construção de leis, paradas pela diversidade, manifestações, representatividade, protagonismo e muito mais liberdade de ser, de ir e de vir. Passamos, inclusive, a entender que muitas vezes, as violências contra pessoas LGBTQIAP+ começam de forma “inocente”, pelo riso do deboche, pela “piada”.

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Quando tive a estreia da minha performance como Zaquieu, na nova versão da novela, minhas primeiras cenas foram bem caricatas, quase estereotipadas. Zaquieu era a “bicha engraçada” e já nos primeiros dias, pude sentir e acompanhar algumas reações bem divergentes: parte do público achou a personagem divertida; parte do público teceu críticas nas redes sociais com a justificativa de que sou militante da causa e, portanto, não deveria interpretar uma caricatura gay cômica - tão presente na teledramaturgia brasileira.

Eis que o autor Bruno Luperi, neto de Benedito Ruy Barbosa, surpreende essas duas qualidades de público logo dois capítulos depois. Zaquieu deu início a uma curva dramática menos superficial, mais densa, especificamente, quando ele percebe que está sendo manipulado por Madeleine (Karine Teles), e usado como motivo de chacota na internet. Bruno escreveu no roteiro:

“O que mais pode almejar na vida um mordomo gay, senão o papel do mordomo, gay engraçado ?”

Essa frase é o início de um novo percurso dramático muito significativo dentro da trama e que, de fato, provoca questionamentos não apenas sobre a vida fictícia de Zaquieu, mas também impulsiona uma reflexão sobre os estereótipos emplacados na TV e no cinema que reforçam a ideia de que todo gay é apenas divertido, “chaveirinho de hétero” ou que sempre será bem-vindo nas rodas de amigas, porque é sempre bom ter alguém engraçado por perto.

Pois bem, meu Zaquieu é engraçado mesmo, mas isso porque é de sua natureza, é quem ele é de verdade, mas essa característica não é sua função social. Zaquieu não está para divertir e agradar. Não somente. Como qualquer outra pessoa, da ficção e da realidade, ele enfrentará problemas e conflitos, confrontará inimigos, viverá momentos de pura alegria e de grandes tristezas, tal qual a vida.

Zaquieu, assim como eu, assim como qualquer pessoa LGBTQIAP+, causará desconforto a todos que insistem em manter os mesmos padrões da sociedade patriarcal, provocará reflexões, questionará “piadas”, porque ele sabe que muitas batalhas contra o preconceito foram vencidas, mas a guerra contra ele não. E se tem uma coisa que a gente já sabe, é do poder pedagógico fascinante que as novelas podem ter.

Aguardem as cenas dos próximos capítulos.

 

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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