Algumas dores não ficam no pátio da escola

Memórias podem se transformar em inseguranças profundas.

Escrito por
Silvero Pereira verso@svm.com.br
Legenda: É desde a infância que aprendemos que ser quem somos tem um preço alto
Foto: sweet_tomato/ Shutterstock.
Há histórias que o tempo não apaga, apenas aprende a disfarçar. A escola, definitivamente, é um lugar desafiador para crianças e adolescentes LGBTQIA+ e as cicatrizes impactam muito em nossa personalidade adulta, porque algumas dores não ficam no pátio do colégio.
 
Quando criança, fui um menino “delicado”. Frequentemente ouvia piadinhas e brincadeiras sobre o meu jeito, mas lembro, especificamente, de uma menina com um dedo apontado para mim, gritando “viadinho”. Eu corri dali, chorando, envergonhado, porque eu não sabia exatamente o que aquela palavra significava, mas sabia que ser “viadinho” era vexatório.
 
O recreio, que deveria ser sinônimo de liberdade, muitas vezes se torna uma arena. Ali, meninos afeminados como eu são convocados diariamente a se defenderem de algo que jamais deveria ser ofensivo: quem eles são.
 
Em 2025, uma pesquisa sobre bullying no ambiente escolar, realizada pela Aliança Nacional LGBTI+, apontou que nove em cada dez estudantes LGBTQIA+ afirmaram ter sido vítimas de agressão verbal na escola durante o ano letivo de 2024.
Nove. Em cada dez.
 
É no período em que mais precisamos de acolhimento e proteção que aprendemos que ser quem nós somos tem um preço alto. Um gesto suave é punido, uma cor favorita vira motivo de deboche, os apelidos são jogados como pedras, o isolamento é uma realidade, a violência física também acontece e o armário parece o único lugar possível para a segurança.
 
Essas cicatrizes escolares não aparecem nas fotos de formatura. Elas moram em inseguranças profundas: o medo de falar alto, de errar, de desagradar, de ser demais. Ela aparece quando o afeto se torna cauteloso, comedido. Quando o orgulho precisa ser aprendido. Quando o elogio soa como ameaça. Quando o abraço vem com dúvida e quando o culto ao corpo vem como necessidade de aprovação.
 
Por mais bem resolvidos e/ou bem sucedidos quando adultos, o passado marca, molda e determina. Durante muito tempo tentei (e ainda tento, de certa forma) esconder o menino “manteiga derretida” que eu era. Me mostrar frágil e vulnerável me custou muito e eu encontrei na dureza um caminho para autoproteção.
 
Contudo, o menino chorão segue vivo aqui dentro e eu tento muito honrar a sua história, seus sentimentos e acolher suas fragilidades hoje, transformando toda a dor em força, arte, política e comunidade.
 
Esse corpo que um dia foi alvo também pode ser uma casa bonita de se habitar, porque a voz que tentaram calar, hoje até canta.
 
Não há um caminho exato ou uma cura específica para esses traumas. Cada um sabe da sua trajetória, mas acho importante dizer aqui e deixar registrado (inclusive pra mim): ninguém deve crescer com medo de existir.

 
 
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