Aos 15 anos, descobri o que era ser homem preto no Brasil. Sim, em muitos casos, nós não sabemos e/ou algumas vezes fugimos dessa identidade por tudo que foi socialmente construído e representado, sobretudo quando impacta em nós abraçarmos algo que sempre remete a nossas memórias, corpos e imaginário para a negatividade, medo e vergonha. Ao me reconhecer negro, consegui ampliar meu olhar sobre mim, sobre o mundo e a realidade que me cercava.
É um caminho tenso essa descoberta. Muitos sentimentos habitam nossa cabeça quando esse terceiro olho se abre. Raiva, sentimento de vingança, mágoa, tristeza, “neuras” e um sentimento de ódio muito forte por tudo se desvendar, os muitos enigmas que afetam nossa confiança, nossa autoestima e nosso senso de humanidade por anos.
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O que eu iria fazer com isso num país onde o racismo é eficiente e sua violência é sistemática e eficaz no controle e, até, na eliminação de corpos pretos? Um racismo que é visto como velado, mas todos assumem a sua existência e quase ninguém reconhece que o pratica.
Aqui, no Brasil, ele atua de maneira diferenciada, de acordo com cada realidade. No caso do Ceará, por exemplo, predominou a ideia, durante muito tempo, até no discurso oficial, de inexistência de pessoas pretas no Estado.
Então eu me perguntava: o que fazer com todos os problemas que o racismo gerou em minha vida? A questão não era sobre o que o ódio e a violência geram, mas o que eu iria fazer com isso.
Nesse aspecto, o Rap ajudou demais na construção de uma identidade saudável, no aspecto do orgulho, da afirmação e da expressão dos dilemas, pautas e buscas de homem negro. Mas eu queria mais, queria ir além. Foi quando nos anos 2000 eu conheci a CUFA, e daí descobri e aprendi muitas estratégias para lidar com o racismo à brasileira.
A primeira: não deixar o racismo me pautar pela régua da tragédia, do sofrimento e da carência. Somos potentes e, como tal, produzimos nossa própria narrativa e enredo positivo sobre nós e nossos territórios, como forma de não só questionar, mas de construir um processo social na contramão do racismo estrutural, a partir dos territórios das favelas.
Segunda: produzir nossas próprias estratégias de ver, viver e ler o mundo, não aceitando mais sermos ratos de laboratórios, habitantes de um cativeiro ideológico onde a favela é um grande safári social. Nos pretos, o experimento; os brancos, os intelectuais e cientistas. Instalamos um processo de ruptura com essa lógica, agora, somos protagonistas das nossas lutas e não coadjuvantes do nosso próprio processo de libertação, físico, mental, social e político.
Terceira: do ponto de vista pessoal, o recorte da CUFA e seu princípio de preparar os escolhidos, homens e mulheres pretos das favelas, nos qualificou e impulsionou para espaços geralmente não comuns a gente preta. Confrontamos, nesta estratégia, todo o imaginário social do racismo à brasileira que nos reduz sempre à condição de servidão, nunca de mando. E, nesse aspecto, agregamos temas que geralmente não são associados à nossa agenda como economia, negócios, tecnologia, poder político e potência econômica, para citar alguns.
Quarta: do ponto de vista coletivo, pautar uma agenda pública do nosso interesse, dialogando com a diversidade dos poderes privados e estatais visando encaminhar as soluções oriundas das favelas ou demandas por elas.
Por último, faltava um plano de voo para transitar sem perder a referência da nossa origem. Dialogar sem perder de vista nossa pauta e nossos interesses. Negociar sem nos deixar deslumbrar, mas, também, não interditar canais importantes de diálogo, buscando sempre resultados e alternativas. Foi preciso confrontarmos, continuamente, o imaginário social nas relações de poder que nos percebiam num lugar de invisibilidade.
Interessante é que, quando saímos deste lugar, somos subestimados ou percebidos como gente de segunda classe. Nesse quesito, o constrangimento pedagógico foi uma descoberta importante para mim. Uma tática que constitui uma espécie de Waze para seguir nos caminhos e vias engarrafadas de preconceito e discriminação.
Então, o primeiro passo foi a nova identidade e investimento nas emoções. A escolha do nome Preto Zezé, como registro e comemoração da autodescoberta e sua afirmação positiva, transformando vergonha em orgulho e estigma em carisma. O constrangimento pedagógico é uma categoria debochada e irônica com pitadas de criação em situações de reciprocidade da violência sofrida. Uma reação ao racismo com um choque bem-humorado e um acolhimento com provocações que buscam mudar valores.
A ideia central da abordagem se baseia na necessidade de dissolver o preconceito da cabeça das pessoas por meio de fortes doses de deboche e bom humor ácido para fazê-los problematizar a posição e ver o óbvio da escrotidão. O efeito do preconceito e discriminação racial nas pessoas é produzir um distanciamento, simbólico e físico, uma classificação antecipada e excludente na significação social que avalia e julga o outro a partir de nós mesmos.
Por isso, o constrangimento pedagógico nos conduz por um caminho em que desarmamos os estereótipos e geramos uma empatia de choque que nos aproxima uns dos outros, deixando sinalizações que não permitirão que o indivíduo manifeste sua escrotidão racista, sem ser percebido, questionado ou desenvolva o auto constrangimento.
No próximo artigo, eu compartilharei com vocês algo bem interessante, para que juntos possamos ir do discurso às práticas pedagógicas e menos punitivas. O punitivismo e a resposta apenas penal ao racismo, alternativa mais fácil, somente agrava ainda mais a situação. Individualiza um processo estrutural e em nada contribui com a mudança efetiva e para o desenvolvimento de mecanismos antirracistas institucionais e políticos que garantam a integridade e dignidade das pessoas, independente de cor e raça.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.