Siará, o Saara brasileiro

Sobre camelos, desertos e políticas governamentais diante da quentura do passado e da fervura do futuro

Legenda: Desde os nossos mais antigos registros, orais e/ou escritos, está documentada nossa ligação com a escassez e nossa luta contra os males da seca
Foto: Wandenberg Belém

O Ceará provavelmente terá o primeiro deserto brasileiro. Isso está dado, mas nossa relação com a fervura global não é de hoje. Nós, que já tentamos até domesticar e proliferar dromedários e camelos em nossas dunas e sertões na esperança de que os “navios do deserto” ajudassem nossa gente a suportar as longas estiagens.

Nós, que até no nome podemos ter a inspiração do mais famoso dos desertos. Nós, o Ceará e os cearenses, que somos voz clamando desérticos sem boas novas para trazer. O que nós temos a fazer diante do caos climático?

A Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) cravou que regiões da Ibiapaba e do Sertão Central registraram clima equivalente ao Sudão saariano, um dos locais mais áridos do mundo. Domingo (3), o Diário do Nordeste noticiou, em matéria de Thatiany Nascimento e Lucas Falconery, o retorno de nossa habitual “seca multianual”.

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Desde os nossos mais antigos registros, orais e/ou escritos, está documentada nossa ligação com a escassez e nossa luta contra os males da seca. 2024 promete com o ‘Super El Niño’, esse terrível e esquentado menino que corre, danado, pelas águas atlânticas, tacando fogo no mar enquanto a humanidade joga querosene na fogueira.

Temos que pensar é como vamos lidar com essa escaldante realidade e quais ações do governo podem amenizar o mal que já está posto. Não podemos simplesmente esperar, temos que protagonizar as decisões.

A comissão cientifica e os 14 camelos do Ceará

As políticas públicas, se foram dissociadas da consciência crítica e coletiva, podem resultar em desastres e em esforços e tempo preciosos desperdiçados. Uma das histórias mais insólitas da nossa luta com a crise hídrica é a jornada dos 14 camelos trazidos do Saara para o Ceará.

A saga transaariana-transantlântica-transertaneja dos dromedários trazidos da Argélia para servir as necessidades do Sertão é uma história tão próxima dos contos de Sherazade quanto da crônica imperialista que pretendia moldar o mundo do século XIX ao bel prazer dos governos e dos exploradores-cientistas.

Sete casais dos desérticos animais desembarcaram na praia de uma Fortaleza ainda provinciana e restrita a oito ruas principais e seus arrabaldes. A comitiva foi recebida com festa e curiosidade por políticos, cientistas e uma multidão que queria saber das bestas que iriam substituir mulas, jumentos e cavalos na travessia do sertão.

Muitos queriam ver os “mouros”, argelinos que acompanhava os animais, islâmicos pintados como feras não-cristãs que assolavam a terra santa e agora chegavam ao Ceará. A massa analisava com temor, humor e desconfiança aquelas duas coleções exóticas e inéditas de bichos e homens.

O cortejo de animais, tratadores e exploradores era pago pelo governo imperial brasileiro. Dom Pedro II, através da ação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), promoveu a importação e aclimatação dos camelos para situar o Brasil no jogo geopolítico do cientificismo nacionalista do século XIX.

Havia o incentivo que a ciência brasileira registrasse a fauna, a flora, os minérios e os elementos da topografia e das gentes do país. Depois de séculos sendo estudados por naturalistas estrangeiros era hora de o Brasil Imperial desbravar as fronteiras do mundo natural e social.

O IHGB montou então a primeira expedição científica nacional, o alvo desta pioneira empreitada não foi, no entanto, nem a Amazônia nem o Pantanal. A Missão Exploratória Científica Brasileira desbravaria as indômitas terras do Ceará e desenvolveria um programa de aclimatação de camelos nas secas terras desta província.

O livro “catorze camelos para o Ceará”, do gaúcho Delmo Moreira, sintetiza agradavelmente os trabalhos e documentos científicos e acadêmicos sobre a expedição – pretendo ainda escrever mais sobre essa expedições em outros textos – e demonstra o fracasso da ação exploratória e mais ainda da experiência de transformar o Ceará em um celeiro de camelos e dromedários.

Enviados a fazendeiros do interior, em poucos anos todos os animais morreram ou tiveram que ser sacrificados. Os sete casais da cáfila cearense chegaram até a procriar com pequenos camelinhos frutos da terra animando os apoiadores do projeto, mas, a falta de continuidade e seriedade do empreendimento legou os fortes animais a meras atrações e curiosidades. A política imperial virou então uma chacota histórica e política.

O fracasso se consolidou no imaginário popular com o famoso e vitorioso samba da Imperatriz Leopoldinense que em 1995 contou como anedota a saga dos camelos cearenses. O enredo “Mais vale um jegue que me carregue, que um camelo que me derrube lá no Ceará” ganhou o carnaval e o Brasil, valorizou os jumentos, mas, consolidou como piada um projeto que precisaria de crítica séria ante a politicagem e o clientelismo que enterraram a expedição e os animais.

A operação dos camelos virou humor diante da nossa forma sempre ácida de ironizar a política e os políticos, mas, os camelos são vítimas icônicas de nossa ineficácia de tratar o tema ambiental com a devida atenção e relevância, do passado ao presente.

De terra com nome de deserto à maior economia do Norte: o que aprendemos?

A expedição científica imperial escolheu o Ceará como destino por suas promessas de riqueza e por seu isolamento diante do projeto colonial português. Mesmo que sempre tenham havido relatos sobre a riqueza mineral do estado pouco se investiu no domínio desta terra. Os governos sempre foram falhos com estas terras e gentes apesar de nossas promessas de riquezas e nossa gente trabalhadora.

O historiógrafo Antônio Bezerra diz que nosso nome surgiu não do tupi, mas dos navegadores que vendo nossas dunas brancas e vastas diziam que aqui era um Saara. Sahara, Saará, Siará, Ceará...Será? No livro de Delmo Moreira um dos “mouros”, um argelino que veio cuidar dos nossos camelos teria dito que adoraria conhecer o Ceará, pois tinha ouvido em Argel que “o Siará é o Saara do Brasil”.

O que faremos então, governo e povo, com esse dito-predição, pois, com a atual onda de calor, a promessa de seca multianual e o aumento da fervura de nossa terra nos resta pensar as palavras argelinas seriam sobre o ontem ou sobre o amanhã.

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