Chegaram as águas de março arrastando e alagando diversas zonas do país após secas históricas do Norte ao Sul, após um calor que fez de 2023 o ano mais quente já registrado! A natureza, em apenas três meses de 2024, já demonstra o quanto precisamos parar e observar nosso meio, nosso ambiente, nossa terra, nosso chão!
Parar e observar a natureza, ouvi-la, temê-la agora é uma questão de sobrevivência. Temos, nos rincões do Ceará, dispersos e espalhados, com saberes múltiplos e pouco sistematizáveis – os melhores professores no ensino de ouvir, ver e sentir o meio que nos rodeia: Os mestres profetas da chuva.
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No 28º Encontro de Profetas da Chuva que aconteceu em Quixadá, um já tradicional evento do Sertão Central, nasce uma tradição do presente que nos conecta com nosso passado mais remoto, – e com o quanto precisávamos ouvir o ambiente para sobreviver.
No sertão – onde a água ainda vale em ouro o que pesa – o conhecimento dos profetas da chuva é fundamental para a agricultura familiar. Suas previsões ajudam a decidir sobre plantio e colheita, uso de sementes mais ou menos resistentes à seca e a hora ideal para mudar a colheita caso o plantio não seja o ideal para o regime de águas.
Esses homens e mulheres com seus saberes ancestrais ajudam a colocar comida nas escolas públicas e nas casas dos mais necessitados, contribuindo com homens e mulheres do campo e da cidade.
O saber dos profetas me lembra os senhores da história africana, os mestres Griôs, o centro de uma tradição cultural e política que marcou África Ocidental, eram contadores de histórias, responsáveis por preservar e transmitir o saber, as práticas e conhecimentos do seu povo. Conheciam arte, botânica e política e eram ouvidos pelos governantes.
Mestres Griôs eram poupados em caso de guerras e sanções, pois, se morressem, não se perdia uma pessoa, perdiam-se saberes. Ao morrer eram “enterrados” no interior das árvores, preferencialmente os sagrados baobás, para que suas narrativas continuassem nas raízes fertilizando o solo daquela terra e suas folhas cobrindo aquela gente.
Os baobás africanos se fazem presente agora no sertão central cearense. Um tipo novo de jardim tem sido cultivado no campus do Instituto Federal do Ceará (IFCE) em Quixadá, um jardim de tradição, ancestralidade e memória. Um espaço de árvores plantadas em memória dos profetas das chuvas; para cada profeta que retorna à natureza uma árvore se soma ao jardim das profecias.
Conheci esse canteiro de saberes e heranças através de Helder Cortez, - idealizador do Encontro dos Profetas da Chuva e um dos mais apaixonados divulgadores do conhecimento das gentes do sertão - a soma de seu espírito inquieto com a de outros entusiastas das profecias das chuvas dentro da gestão do IFCE que surgiu a ideia do jardim.
Já estão no espaço aroeiras, ipês, ingazeiras e oitis em memória de Mestres como Francisco Mariano, Antônio Lima, João Ferreira Lima, Francisco Leite, Chico Leiteiro, Ribamar Lima, Antônio Paruará, Joaquim Moqueca, Francisca Nobre Cavalcante e Francisco Filismino entre outros que já se foram, mas, aqui estão, presentes!. Em 2024 mais duas árvores se somaram ao jardim que reverencia a cultura nativa de um sertão que resiste.
A cada nova muda certos conhecimentos se perdem para sempre, mas suas memórias agora crescem enquanto jovens acadêmicos 'IFceanos' descansam ancorados sobre suas raízes e protegidos sob suas sombras.
Os canteiros projetados para receber as árvores-profetisas terão placas de identificação dos/das profetas, suas histórias e a descrição de como liam o mundo, das pedras de sal aos sonhos, dos pássaros aos fungos. Para o sertanejo, toda a natureza se comunica, basta saber ler, ouvir e ver.
O encontro de profetas das chuvas é uma tradição inventada que se torna marca identitária da nossa forma de ler o mundo, é um ser cearense, um se conectar com a terra do Ceará. Terra tão necessitada das águas, tão ligada à necessidade de controle e gestão hídrica que a sabedoria dos séculos nos fez ler o mundo em buscas da sonhada chuva.
O Jardim dos profetas é um símbolo, um rito, mais uma tradição inventada, uma forma atual, ativa e presente de ancestralidade. É a metáfora do saber que se compartilhar, que brota em narrativas, que floresce.
Pedro Puntoni e Luiz Bolognesi escreveram o livro “meus heróis não viraram estátua”, me lembrei dessa obra ao pensar que, talvez, um dia, os cearenses possam, passeando por entre uma bela vegetação sertaneja dizer: Meus profetas viram jardins.