As novelas são conhecidas pela capacidade de tratar dos dramas mais intensos, das histórias inimagináveis e criar possibilidades distintas de outros gêneros audiovisuais. Em 'Pedaço de Mim', novo lançamento da Netflix definido como um 'melodrama', mas semelhante a uma novela, é assim que acontece: as tramas mais impossíveis dão espaço a discussões importantes sobre amor, escolhas, abusos e caminhos de vida.
Se você é um consumidor assíduo de novelas, esses temas citados aqui, inclusive, não parecem nada fora do comum quando vistos em tramas desse tipo. No melodrama da Netflix, lançado oficialmente nesta sexta (5), eles ganham os mesmos contornos intensos, mas de forma mais condensada, em 17 capítulos, e tocando em pontos onde o espectador também se questiona sobre a realidade.
Temos como protagonista Liana (Juliana Paes), uma mulher que sonha em ser mãe, mas acaba enfrentando uma série de tormentas até descobrir a própria gravidez. Traída pelo marido, Tomás (Vladimir Brichta), ela vivencia uma relação sexual não-consensual, algo que a abala profundamente.
Diante do trauma sem tamanho, a personagem principal desse melodrama descobre carregar uma superfecundação heteroparental: uma gravidez de gêmeos de pais diferentes. Segundo a novela, um fruto do relacionamento com o marido, enquanto o outro é originado da relação de estupro. O caso fictício é raríssimo, mas já foi registrado 20 vezes na vida real.
'Pedaço de Mim' tem a essência dos melodramas que já conhecemos. É diferente, de fato, das novelas consumidas na televisão, justamente pelos poucos personagens vistos em cena, responsáveis por preencher os núcleos também menores. Todos eles, inclusive, acrescentam algo na trama, que é mesmo bem diferente das outras produções da Netflix.
Juliana Paes e Vladimir Brichta envolvem como casal protagonista, dispostos a entregar o necessário em cena e demonstrando toda a desenvoltura clara dos anos atuando em telenovelas. As nuances da história dos dois personagens vividos por eles são diversas, e os dois parecem preparados para deixar o espectador construir a narrativa junto do roteiro.
A atriz é o grande destaque. Juliana performa Liana de tal maneira que nos faz sentir a dor e os desprazeres machucando a cada segundo em cena. O choro engasgado da atriz traz a angústia entranhada na personagem, nos fazendo refletir sobre o poder que os segredos possuem dentro dos seres humanos e, acima de tudo, das mulheres.
"Tudo que usei para compor a Liana foram coisas que acabei vivendo em algum momento", adiantou Juliana Paes em entrevista à coluna dias antes da estreia do novo trabalho. A atriz pontuou que a carga dramática da série de melodrama a fez refletir sobre o universo da mulher na sociedade, levando-a a questionar até mesmo as próprias escolhas.
O ator, pontua Juliana, também funciona nessa troca com as personagens que interpreta. "Muitas das experiências que a Liana vive, eu já passei. Então, é inevitável que a gente faça esse intercâmbio de emoções do que a gente já viveu e da personagem. Viver a Liana me fez questionar muitas coisas, o próprio desejo de maternidade, essa construção que passa muito por uma pressão social, por exemplo", adiantou ela, reforçando que a preparação para o papel acaba transbordando nesse espaço.
"Seja a coisa do machismo, da maternidade. São coisas que estão nessa série, mas passaram muito pela minha vida como mulher também em ocasiões diferentes. A gente como mulher se sente impossibilitada de falar para que não nos vejam como as malucas, as reacionárias, e por aí vai", acrescenta.
Juliana comentou sobre a diferença de 'Pedaço de Mim' para as telenovelas por ser uma obra fechada. Como atriz, ela acredita no lado positivo dessa questão justamente para entender onde o caminho da personagem pode levá-la e quais as possibilidades de chegar até lá. Na TV, os espectadores podem, em muitos casos, interferir no andamento da obra, o que pode alterar o objetivo inicial.
"Por ser uma obra fechada, pedi a escala de todas as cenas para a produção porque eu sabia onde eu queria chegar. Sabia que eu queria a redenção dessa mulher, quando ela resolve buscar a paz, quando ela quer desabafar, abrir todos esses segredos guardados. Então, consegui colorir de um jeito muito diverso esse caminho para acertar o tom da Liana", disse.
Longe da preparação artística, no entanto, outros fatores também perpassam a obra criada pela autora Angela Chaves e dirigida por Maurício Farias. A 'série melodramática' percorre questões como a recuperação de vítimas de abuso sexual, a gravidez não-desejada, as traições em relacionamentos monogâmicos e a figura feminina nestes assuntos.
Os quatro primeiros capítulos, recebidos por esta coluna antes da estreia, focam inclusive em um tema muito recente da sociedade brasileira: a de se a mulher deve ou não poder escolher quando deseja seguir com uma gestação.
"Como conviver com o fruto de um abuso sexual, como ressignificar isso para amar tanto um filho como o outro?", questionou Juliana Paes sobre os dilemas vividos por Liana na trama. À personagem, entretanto, foi concedida a possibilidade de escolher e nesse ponto está parte da carga dramática da primeira parte da produção.
Para a atriz, "as discussões posteriores devem ser enormes", caso seja possível pensar no impacto dessa obra. "Quando a gente consegue trazer a identificação, o público se sensibiliza, os debates acabam mais profundos. Se você tem um personagem que te faz sentir, se angustiar, talvez você discuta isso de outra maneira dentro ou fora de casa", aponta ela.
Três fases da vida de Liana passam diante da tela do espectador da Netflix. São 17 anos da personagem em cena, que também demonstram as diferentes opiniões capazes de percorrer por nós, seres humanos, ao longo do tempo.
A intenção da arte, nesse caso, segundo Juliana, seria justamente a de "provocar". Como protagonista, ela volta a reforçar, a obra consegue ser um meio para podermos nos envolver com tópicos sensíveis da realidade de forma mais honesta, aberta e lúcida.