Regularização dos jogos de azar no Brasil e a Sociedade de Vícios
Decisão tem impactos na saúde mental
O Brasil deu um novo passo para um futuro ainda incerto com a aprovação de um projeto pela liberação de jogos de azar, cassinos, jogo do bicho e bingos na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. A regularização de tais jogos, certamente, irá contribuir para o aumento na arrecadação de impostos e na geração de empregos – mas, como quase tudo relacionado à vida política, esse é apenas um dos lados de um grande prisma.
Ao invés de motivações econômicas, ao ler sobre a pauta, meu pensamento automático foi “como esta decisão vai reverberar na saúde mental dos brasileiros?”.
A saúde mental das pessoas está intrinsicamente ligada ao contexto sócio-histórico no qual vivem. A depender do contexto, algumas demandas podem ficar mais, ou menos, em evidência. Por exemplo, nos anos pandêmicos, principalmente antes da distribuição em larga escala da vacina contra a COVID-19, e perante o desconhecimento e incertezas acerca do vírus, houve um aumento na demanda de tratamentos para ansiedade em nossos consultórios de Psicologia. Outro exemplo são de militares que participaram de alguma batalha ou civis em contexto de guerra que, com frequência, buscam tratamento para Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Enfim, as demandas na área da Saúde Mental, com frequência, são conectadas ao contexto macrossocial.
Quando me formei, há mais de uma década, não era comum nós, psicólogos clínicos, recebermos muitos casos de transtornos de jogo. Os ditos “jogos de azar” – assim considerados aqueles em que a “vitória” depende exclusivamente ou majoritariamente mais da sorte do que da habilidade técnica do jogador – nos parecia ser uma realidade distante, que chegava até nós por meio da indústria cultural americana ou dos relatos dos submundos das cidades brasileiras nos quais, sabemos, os jogos de azar são praticados clandestinamente há décadas e parecem até ser tolerados por parte do Poder Público.
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Entretanto, com a disseminação da internet e das redes sociais, esse submundo dos jogos de azar veio à superfície e passou a ser extremamente acessível, na ponta do dedo, na rolagem de uma tela. A lacuna legislativa e a falta de regulamentação clara geraram o alastramento, ainda que não totalmente regularizado, de apostas online, os mais diversos tipos de “bets” e ‘joguinhos’ amplamente difundidos por ‘influencers’.
Em pouco tempo, passamos a nos deparar frequentemente em nossos consultórios com os efeitos nefastos dos jogos que, não raramente, abalam famílias inteiras. Cada vez mais, observamos pessoas apresentando sintomas do que os manuais diagnósticos chamam de “Transtorno de Jogo”.
Esse transtorno é amplamente documentado e não é um diagnóstico recente: já fez vítimas ilustres, como os icônicos escritores Dostoievski e Edgar Allan Poe. Sabemos, claro, que a maioria das pessoas jogam sem grandes problemas, mas há uma parcela da sociedade que é mais vulnerável ao transtorno do jogo, comprometendo a própria vida, e a dos que estão a seu redor, devido a comportamentos desadaptativos diante de jogos.
Existem critérios claros para alguém receber esse diagnóstico, mas é preciso estar muito atento, uma vez que o aumento na frequência e valor das apostas costuma ser gradual. É necessário, ainda, atenção ainda maior àquelas pessoas que até tentam parar de jogar, mas sempre acabam cedendo, bem como àquelas pessoas que perdem dinheiro e voltam a jogar na ilusão de recuperar o prejuízo. Também é fundamental ligar o alerta quando a fonte de renda já não é o suficiente para conciliar a vida social com seus jogos e, sobretudo quando, frequentemente, mentem e dependem de outras pessoas para obter mais dinheiro para jogar.
Diante deste novo contexto, de regularização de jogos de azar, certamente, a demanda de pessoas que sofrem ou sofrerão com Transtorno de Jogo irá aumentar.
Ao girar novamente o prisma, observamos que a tal regularização é apenas a ponta de um enorme iceberg que flutua e esconde, submerso, a triste faceta de uma sociedade adoecida. Este ‘vício’ em jogo está longe de ser o único algoz da saúde mental atualmente e, lamentavelmente, constatamos que é a nossa sociedade, como um todo, que tem se tornado uma sociedade de viciados.
Nunca tivemos tantas demandas de vícios em nossos consultórios de Psicologia
Vício em pornografia, jogos de azar, jogos eletrônicos, apostas esportivas, em compras, telas, redes sociais, em drogas lícitas e ilícitas e, até mesmo, em trabalho: os ‘workaholics’ são assuntos diários para quem trabalha com saúde mental. A passos largos, estamos nos transformando em uma sociedade de adictos, que parece cultuar e romantizar as compulsões: “trabalhe enquanto eles dormem”, “beba sem moderação” etc. Estes bordões parecem inofensivos, mas são potencialmente destruidores – implantam, sem percebermos, narrativas fabricadas que fomentam o consumo desenfreado e a descoberta de novos “vícios”.
Olhe ao redor: você, provavelmente, conhece alguém viciado em algo e/ou provavelmente você mesmo pode estar viciado em algo. É preciso refletir o que esta epidemia de vícios revela sobre nossa sociedade e de que modo essa realidade nos impacta. É preciso refletir sobre o nosso cenário atual e sobre o porquê dessa regularização dos jogos de azar se tornar uma pauta relevante justamente neste momento sócio-histórico em que vivemos: a quem interessa essa regularização? A quem interessa regularizar algo que, historicamente no Brasil, sempre foi proibido?
Por outro lado, também é necessário questionarmos nossa autorresponsabilidade diante desse cenário. O que essa abertura diz acerca dos nossos próprios comportamentos? Em um mundo de pós-verdades e de descrenças nas instituições parecemos hiperfocar em determinadas ações e “vícios”. Então, até que ponto mantermos ações compulsivas nos auxilia a anestesiar as exigências de uma sociedade adoecida que nos cobra hiperprodutividade, hiperconsumo e hiperperfomance?
Claro, existe uma fisiologia envolvida para que uns se tornem mais suscetíveis que outros a determinados vícios.Mas é curioso que nossa sociedade seja, de um modo geral, terreno fértil para os mais diversos vícios – regulamentados ou não.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora