Existem muitas dissidências entre as mais diversas abordagens psicológicas, mas, se há um consenso entre psicólogos de diversas correntes, é que o comportamento humano, na atualidade, é mediado pelas novas tecnologias. Esquecer o celular em casa faz com que muitos se sintam desnudos, como se faltasse uma parte quase integrante do ser. O trabalho, o estudo, a paquera, nada é como antes. A tecnologia atravessa todas as esferas de nossas vidas.
De modo geral, acredito que todos tenham, em maior ou menor grau, alguma consciência da influência das tecnologias em nosso comportamento cotidiano. Alguns talvez lembrem até da evolução das mídias sociais: nos primórdios da internet, postávamos em blogs longos textos catárticos, esperando que a audiência lesse e comentasse.
Esse ritmo de compartilhamento online era muito diferente do que vemos hoje: postamos uma foto com uma legenda, usualmente curta, e os comentários e curtidas são imediatos. Se a reação do público à postagem não for a esperada, muitos, rapidamente, editam a legenda ou até mesmo apagam a foto. Ou seja, a postagem é feita em tempo real, juntamente com a audiência – é uma construção conjunta.
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Muitas pessoas estão familiarizadas com esta situação. Entretanto, o que muitos parecem não perceber é que não apenas postagens estão sendo feitas em tempo real, juntamente com a audiência: estamos em uma era na qual políticas, e decisões importantes sobre nossas cidades, também estão sendo formuladas em tempo real, com a participação da audiência, ou seja, nós, cidadãos. Isso ficou bastante claro, recentemente, com a "questão Fortal".
Em abril deste ano, foi anunciado que o Fortal, tradicional micareta que entrará na sua 31ª edição, não seria mais realizado na "Cidade Fortal" (local em que se realiza há bastante tempo, em uma região semideserta da capital cearense), mas sim nas imediações do aeroporto. O cidadão fortalezense, em sã consciência, provavelmente não é contra a micareta em si, afinal, os impactos econômicos são enormes.
O evento projeta nossa cidade nacionalmente, gera empregos, atrai turistas, além de reacender a alegria carnavalesca, fora de época, a milhares de foliões. A mudança de local, inicialmente, também não foi vista como um problema, afinal, segundo o site do próprio aeroporto, a mudança possui um objetivo claro e economicamente nobre: "O objetivo é apresentar o aeroporto como uma extensão da cidade, a fim de despertar o interesse de investidores do mercado imobiliário e contribuir com o desenvolvimento socioeconômico do país e da região."
Entretanto, com o passar dos dias, o cenário pacífico sobre a mudança de local foi dando lugar a sérias denúncias. O preço a se pagar por quatro dias de folia, e um possível boom na economia local, seria a destruição de 20 hectares de Mata Atlântica, um dos raros resquícios desse bioma em Fortaleza. Árvores adultas começaram a ser desmatadas e, em meio às denúncias nas redes sociais, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) embargou a obra e multou a empresa responsável pelo serviço.
A denúncia de um vereador tocou muitos fortalezenses, inclusive figuras históricas, como Fátima Limaverde, fundadora e diretora de uma tradicional escola de Fortaleza com mais de 40 anos de história, que se manifestou através das redes sociais da escola, afirmando na legenda que "destruir uma floresta para viabilizar um evento particular com duração de quatro dias é inaceitável".
A indignação do povo fortalezense foi notário nas redes sociais. Uma postagem sobre o início da destruição da mata no aeroporto, feita pelo vereador Gabriel Aguiar, conta, até o momento, com mais de 700 mil visualizações e mais de 11 mil compartilhamentos. Uma hashtag começou a ganhar força nas redes sociais dos fortalezenses: "#FortalNoAeroportoNão" e o compartilhamento de mensagens sobre o desmatamento começou a aumentar significativamente. O assunto chegou às mesas de bar, nas conversas cotidianas e nas autoridades cabíveis.
É preciso deixar a ingenuidade de lado e assumir que desconhecemos todas as variáveis envolvidas em decisões políticas e em acordos públicos e privados. De nossas casas, enxergamos apenas a ponta de um imenso iceberg. Jamais saberemos o que realmente aconteceu: talvez tenha sido o alvoroço nas redes sociais, talvez a generosidade do empresário Ivens Dias Branco Júnior, que, segundo o governador do Estado, liberou novamente a área onde o Fortal tradicionalmente acontecia.
Talvez sejam as proximidades das eleições ou o clima de ansiedade em relação às questões climáticas, como a situação no Rio Grande do Sul. Talvez, seja a junção disso tudo. Independentemente das razões, conhecidas ou não, o fato é que, neste ano, não teremos 20 hectares de Mata Atlântica comprometidos para a realização do Fortal. Nossa manifestação (online, in loco e política – por meio da voz de um vereador eleito pelo povo), foi ouvida.
Certamente já é hora de compreendermos que não apenas nossas postagens são feitas em tempo real; as políticas e decisões sobre nossa cidade e meio ambiente também parecem ser tomadas em tempo real – nossas reações parecem poder alterar certos rumos. Este episódio me deixou feliz e esperançosa, notadamente por me dar elementos para discordar do genial Lima Barreto, que dizia que o Brasil não tem povo, mas público. Desta vez, o fortalezense não foi apenas um espectador passivo; mas um povo unido, usando os recursos disponíveis, como uma hashtag, algoritmos, postagens e compartilhamentos para fazer não apenas barulhos virtuais, mas gerar diferença concreta.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora