Oração de Coração Selvagem

Foto: Reprodução/Instagram

É notável a insistência da vida em ignorar nossos planos. Por vezes, as curvas no caminho e os contornos para os quais ela nos obriga são palatáveis, outras tantas, medonhos, intoleráveis. Não há racionalidade que suavize algumas interrupções. Nessas ocasiões, invoco a oração de Coração Selvagem: “Meu bem, mas quando a vida nos violentar; Pediremos ao bom Deus que nos ajude; Falaremos para a vida: "Vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil".

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Sim, também oro com letras de músicas e com literatura. Uma das orações que mais me acalenta veio da literatura, aprendi com Carla Madeira. Em seu estupendo "Tudo é Rio", a cativante Aurora fala para sua filha, Dalva, após o sofrimento intolerável da perda de seu filho, seu neto:

“O que peço a Deus com fervor é para dar conta. Pede também, filha. Pede para dar conta. A gente passa a vida pelejando com o dilema de existir ou desistir, com o que é bom e o que é ruim, o certo e o errado, a morte a vida. Essas coisas não se separam. O lugar que dói é o mesmo que sente arrepios. É no corpo, no amor e na liberdade de escolher as coisas que a gente fica inteiro ou despedaçado. Então, pede para a parte boa dar conta da parte ruim”.

Oro para dar conta, peço para a parte boa dar conta da parte ruim, para que o sofrimento não venha em toda sua brutalidade. Mas, se vier, oro, com fervor, para dar conta – e é isso que peço aos meus, é isso que peço aos que sofrem, que deem conta. Uma vida sem sofrimentos é ilusória, mas diante de algumas atrocidades, como a que Dalva passou, é impossível não questionar a pedagogia da vida.

O sofrimento é inenarrável, é impossível continuar a viver como antes. Continuar a escrita de nossas vidas sem uma pessoa amada, às vezes, parece uma violência sem sentido, é bruto demais. A dor aumenta com os olhares curiosos, com os pontos de interrogação que nos colocam, com a performance social que temos que prestar. A dor aumenta quando imploramos ao mundo por um sentido e ele não responde de volta – apenas silêncio, apenas uma fenda aberta.

As rupturas biográficas nos convocam a reaprender a viver, a reescrever nossa maneira de ser e estar no mundo. Este termo, “ruptura biográfica”, foi utilizado por um sociólogo britânico, chamado Michael Bury, para definir como alguns eventos traumáticos (no caso estudado por ele, adoecimentos crônicos) geram uma “descontinuidade” da vida, uma quebra que, embora dolorosa, leva as pessoas a reaprenderem a viver.

Com licença poética, tomo emprestada a expressão para me referir a contextos de luto, como o de Dalva: também há uma descontinuidade da vida diante de um luto, também há uma convocação a aprender uma nova forma de viver.

No mês passado, em setembro, conversei sobre Aurora, Dalva e tantos outros personagens em uma livraria, que, por coincidência (ou não), se chama Coração Selvagem. Esse espaço foi um respiro para nossa cidade por um ano. Livros escolhidos a dedo, um bom café, cuscuz com côco, paredes coloridas, um recanto para bons encontros. Infelizmente, suas atividades tiveram que ser interrompidas nesta semana. Os pontos de interrogação, os olhares curiosos se colocam. Porém, lembro o que aprendi com Aurora: “Prometo não aumentar a sua dor exigindo confidências”. Apenas registro aqui que estamos de luto com e por Coração Selvagem e, daqui, oro para darem conta.

 

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora

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