O pequeno manual da boa convivência no Natal

Legenda: Nesta época de reencontrar familiares um misto de sentimentos pode nos visitar
Foto: Jacob Lund/ Shutterstock

Acredito, contra todas as evidências, na bondade humana. Creio em uma natureza boa, mas que foi deformada pelas circunstâncias e mau uso do próprio livre arbítrio. Entretanto, acreditar na bondade humana não implica em ser cega aos inúmeros absurdos cotidianos; não ignoro o potencial humano para destruir o Outro apenas com poucas palavras. Algumas línguas, ácidas, derretem qualquer bem-estar.

Por outro lado, sei que nem toda acidez que nos chega é um ato deliberado de maldade, nem todo comentário ruim é intencionalmente ruim. Muitos são frutos da ignorância: o potencial destruidor de alguns comentários é, simplesmente, ignorado. E as famigeradas ceias de Natal talvez nos apontem, mais que qualquer outra situação social, como é possível que pessoas que nos amem nos firam tanto com seus comentários e perguntas.

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Nesta época de reencontrar familiares um misto de sentimentos pode nos visitar: é possível experienciarmos um doce entorpecimento natalino, a alegria do reencontro e, simultaneamente, a tensão por medo de comentários inconvenientes e perguntas que nos fazem respirar fundo. Então, a fim de não tornarmos nossos laços familiares em nós cegos, preparei um pequeno manual da boa convivência no Natal:

1. Você pode passar uma noite sem perguntar sobre a vida amorosa de seu parente, não dói, prometo. Olhe para sua própria história de vida, você sempre foi pacificado com esse assunto? Se sim, parabéns, você é uma exceção e deve respeitar que para algumas pessoas esta pauta pode ser delicada e, se ela não se sentiu na liberdade de compartilhar com você, deixe quieto.

2. Evite perguntar a um casal quando eles vão querer ter filhos. É possível, como acompanhei diversas vezes na clínica, que esse casal há tempos tente ter filhos, sem sucesso, e que isso, inclusive, tenha se tornado um desgaste no casamento. Então, se eles não comentaram com você sobre esse assunto, não seria esta a ocasião…

3. Evite, sobretudo, falar do corpo de seus parentes. Se a pessoa engordou ou emagreceu, se é alta ou baixa, não se preocupe, ela, certamente, tem espelho em casa. Em uma pesquisa realizada em 20 países, concluiu-se que apenas 4% das mulheres se achavam bonita. Então, a chance de seu comentário acertar em cheio algum complexo é grande, por favor evite.

4. Não pergunte sobre resultados de provas e concursos. Para quem não é familiarizado com o mundo dos concursos, essa é uma pergunta inocente e que demonstra interesse. Entretanto, a prevalência de transtorno de ansiedade entre concurseiros chama cada vez mais atenção dos especialistas. Deixe que ele esqueça um pouco sobre isso na noite do natal.

5. Cuidado com os conselhos que oferece. Eu sei que pode ser tentador repassar gratuitamente toda a sua experiência com filhos, trabalho, vida amorosa, cuidados com a casa etc etc. Entretanto, sua generosidade, quando não demandada, pode facilmente ser interpretada como invasão.

E, acima de tudo, tente diferenciar se o que você vai falar é fruto de sinceridade ou de sincericídio. Na sinceridade, utilizo de uma franqueza, às vezes de maneira assertiva, para passar alguma mensagem ou solucionar alguma questão.

No sincericídio (sinceridade + homicídio), utilizo a sinceridade como pretexto para falar o que eu quiser, de maneira inadequada, sem me importar com as consequências disso, afinal, “só fui sincero”.

Então, para encerrar nosso despretensioso manual, ao comentar qualquer coisa, reflita: essa “sinceridade” pode ferir o outro? Se sim, cale. Pessoas que se utilizam de uma suposta sinceridade para falar o que quer que seja, desferindo qualquer bobagem que venha à cabeça de maneira inadequada e inconsequente, são sincericidas: não levam em conta como isso pode ferir o outro que recebe essa suposta “verdade”.

Então, se a sua pergunta, ou a sua “verdade”, não são necessárias à situação e tem o potencial de machucar alguém, guarde ela para você. Conviver bem, sem sincericídios, talvez seja a melhor receita da noite de Natal.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora