Retrospectiva 2022: falhas de memória

Escrito por
Maria Camila Moura verso@svm.com.br
Foto: Shutterstock/Arte: Louise Dutra

No cotidiano não percebemos como nossa noção de tempo não é nada confiável. Não me refiro aqui sobre a habilidade de ser pontual, tão falha na maioria dos brasileiros. Faço alusão a um outro tipo de noção de tempo, aquele quando estamos vulneráveis.

Explico: infelizmente, todos nós já passamos pelas mais diversas dores - “passamos”, não necessariamente carregamos essas dores conosco. Não costumamos carregar a dor do término do primeiro namorinho de colégio, mas se formos honestos conosco, sabemos que a cena foi vivida com o maior drama possível, a dor era real, hoje parece risível.

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Em momentos de extrema dor perdemos a noção do tempo. Em momentos de extrema dor, parece haver uma suspensão do tempo e um contorcionismo da memória – apagamos momentaneamente nossa superação de outras dores, nossa memória se nega a testemunhar as inúmeras vezes que fomos capazes de nos reinventar – e, como produto final, acreditamos que aquele momento de dor se eternizará, ficamos presos ao presente, incapazes de acessar nosso bom passado, perdemos a habilidade de projetar um futuro e, assim, o desespero aumenta, “será para sempre assim?” – ainda que tempo depois nossas dores se transformem no riso sobre o coração partido de nosso eu adolescente.

Tradicionalmente, como um dos últimos atos terapêuticos do ano costumo propor um momento lúdico aos meus pacientes, na última sessão proponho fazermos a “retrospectiva 2022” e a cada ano vejo uma cena se repetir e, talvez, a frase que mais escuto nesses momentos seja “nossa, que besteira! Como eu me preocupava com isso?”.

Nós, psicólogos, somos obrigados a ter uma boa memória, mas mais que isso, sessão a sessão, registramos postos-chaves daquele dia e, muitas vezes, podemos registrar frases ditas pelos pacientes. Estes registros nos ajudam na avaliação posterior do paciente, compreendemos como ele vivenciava certas dores e o que mudou desde então. Começamos então nossa retrospectiva. Pergunto o que aconteceu a cada mês, “fulano, o que você lembra que aconteceu em janeiro?”, “em fevereiro”? sucessivamente.

Meus pacientes respondem munidos de suas próprias memórias e vivências, eles que passaram pelas situações. Do lado de cá estou munida de uma memória atenta, lapidada diariamente ao decorar as personagens principais da vida de cada paciente, e de um registro documental minucioso de cada sessão, com algumas frases ditas por eles em momentos delicados, mas que não deixam de ser apenas relatos do que eles mesmo me contaram.

Curiosamente, depois de mais de uma década de formada ainda não encontrei ninguém que lembrasse exatamente o que me relatou nas sessões de cada mês... Às vezes o paciente lembrará, por exemplo, que em janeiro começou um novo emprego, mas esquecerá completamente que trouxe para terapia um medo extremo de não ser aceito, de não gostarem dele no novo departamento... e quando eu coloco na mesa, “mas você não lembra como aquele dia foi constrangedor? Você até me disse tal coisa...” e paciente desata a rir “nossa, que besteira, como eu me preocupava com isso?”.

São os risos mais gostosos, risos de um estranhamento de si que encaminham nosso diálogo para a preparação para o ano que se aproxima: quando estiver em dor, porque infelizmente sabemos que ela irá nos visitar, lembre desta cena, lembre de você rindo do que lhe incomodava tanto a ponto de virar pauta em terapia.Lembre que no auge de nossa racionalidade, sequer aprendemos a lembrar que o tempo passa e, com ele, muitas dores são lavadas.

Se puder, lembre que sua memória, na qual estão gravados os conceitos mais complexos, guidelines, nomes e histórias, irá lhe trair na hora da dor, ela não irá resgatar seus momentos de superação. Só lembre: ela não é confiável. A dor provoca uma falha em nossa memória e nos leva a perder a noção do tempo, nos levando a acreditar que a dor é eterna.

Por favor, em 2023, olhe para trás.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora