“Uma negra e uma criança nos braços. Solitária na floresta de concreto e aço (...) Família brasileira, dois contra o mundo. Mãe solteira de um promissor vagabundo. (...) Um bastardo, mais um filho pardo, sem pai. (...) Eu vivo o negro drama.” - faz vinte anos que escutei essas palavras pela primeira vez. Eu tinha 14 anos quando o grupo de rap Racionais Mc’s lançava seu quinto álbum “Nada como um dia após outro dia”, no qual a música Negro Drama se encontrava. Lembro com clareza como cada música daquele álbum me atingiu com força.
Aos 14 anos descobria, de modo definitivo, que meu mundo era pequeno, que a bolha classe média alta na qual nasci e cresci em nada espelhava a situação social do meu país, as realidades eram tão diversas. Enquanto minha preocupação era o quadro de honra de uma turma olímpica de uma escola de elite, alguém vivia o “negro drama”.
Enquanto meus pais, divorciados, cumpriam religiosamente seus compromissos comigo, alguém era só mais um filho bastardo, sem pai. A realidade cantada era distante de meu cotidiano de adolescente branca de classe média.
Duas décadas se passaram desde então. A vida, a Psicologia, as viagens, os bons e maus encontros me colocaram diante de realidades diversas das quais cresci; creio, aprendi um bocado. Aprendi, por exemplo, que o termo “mãe solteira” caiu em desuso. O estado civil em nada indica se as mulheres vivenciam a maternidade de modo solo; não precisa ser “solteira” para assumir todas as responsabilidades que deveriam ser dos dois genitores.
Existem mães casadas que vivem a solidão da maternidade, são mães solo, apesar de casadas. Existem mães divorciadas que os pais assumem o compromisso financeiro e de visitas periódicas, semanal ou quinzenal, e, ainda assim, são mães solo.
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Segundo o IBGE, são mais de 11 milhões de mães solo no Brasil, quase 60% delas vivem abaixo da linha da pobreza. Entretanto, não achei em estatísticas oficiais algo que aprendi olhando ao redor: a maternidade solo não é exclusiva do negro drama narrado pelos Racionais, apesar de aí ela ser ainda mais acentuada.
A maternidade solo está na minha roda de amigas, está no meu feed de Instagram, está na minha clínica de Psicologia, faz parte do desespero de celebridades que utilizam redes sociais para expor a situação que vivem.
Infelizmente, ainda querem reduzir a maternidade solo às obrigações financeiras – isso é muito pouco. Ser genitor-pagante não é ser pai. Ser genitora-pagante não é ser mãe. O desenvolvimento de uma criança é composto por uma fórmula complexa, na qual o ingrediente mais essencial é o afeto.
Talvez, o segundo ingrediente na hierarquia de importância de uma criação seja o exemplo. O aprendizado da criança é, sobretudo, vicário, ou seja, a criança aprende por observação. Então, pais e mães, aqueles que são responsáveis pelo desenvolvimento de uma criança, cuidam do que essas crianças observam em seu cotidiano.
Por isso, me questiono se o termo “pai” deva ser utilizado por aqueles que, periodicamente, assumem compromissos com seus filhos. Seja esse compromisso da periodicidade mensal da pensão ou a periodicidade quinzenal de passeios e visitas. Vale ressaltar que essas visitas, muitas vezes, desorganizam, ainda mais o desenvolvimento das crianças, que têm suas rotinas, regras e valores aprendidos subvertidos.
Nessas visitas e férias compartilhadas, por vezes, a criança observa e aprende que não é necessário dar notícias à própria mãe; observa e aprende como o pai se refere à mãe. A estes pais de compromissos periódicos (seja pelo fiel cumprimento do pagamento de pensão ou de visitas), prefiro chamar de genitores-pagantes, genitores-visitantes – isso, nem de longe, é ser pai ou mãe.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora