Copa do mundo no Qatar: controvérsias e incoerências

Legenda: O jornal The Guardian apontou que mais de 6.500 trabalhadores teriam morrido nas obras relativas à Copa do Mundo
Foto: Sanjay JS/ Shutterstock

Algo aconteceu com os brasileiros nos últimos quatro anos. Como um vírus, que não enxergamos, mas que se instala em nossas entranhas, testemunhamos nosso povo inflamar. Incompatibilidades ideológicas e divergências no modo de enxergar o mundo foram justificativas para o rompimento de vínculos com familiares e amigos. Inúmeras vezes escutei “não é sobre as eleições, mas sobre os valores” e, assim, assistimos ao fim de relações.

A intensidade dos afetos, os jargões (legítimos em sua maioria), como “ninguém solta a mão de ninguém”, pautaram as discussões e foram convincentes para muitos deliberarem suas decisões de romper com amigos e familiares.

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Me questiono se estas pessoas, que estiveram tão inflamadas nos últimos tempos, conhecem as graves acusações que estão sendo levantadas a alguns anos acerca desta copa no Qatar, um país minúsculo, 735 vezes menor que o Brasil, mas imerso em grandes polêmicas. As controvérsias envolvidas na copa se iniciaram há 12 anos, quando o Qatar venceu os Estados Unidos, preferido, até então, na disputa para sediar a copa. Para a surpresa de muitos, o Qatar, contudo, ganhou a eleição. O resultado foi questionável e uma grande investigação sobre um possível esquema de corrupção se iniciou.

O período do ano escolhido para a realização da copa também foi de estranhamento geral. Muitos pensam que os jogos ocorrerão em novembro e dezembro em razão da pandemia de Covid-19. Entretanto, a mudança de calendário foi tomada em 2015, afinal, seria inviável os jogos serem realizados nos usuais meses de junho e julho, devido às altas temperaturas no Qatar, que variam entre 45ºC e 50ºC. Os jogadores e torcedores poderiam sofrer desidratação, insolação e outros problemas de saúde.

Paradoxalmente, não faltam denuncias de trabalhadores submetidos ao calor escaldante ao longo das construções para a copa. Relatórios e denuncias internacionais apontam para a fragilidade dos direitos dos trabalhadores no país e um famoso relatório do The Guardian apontou evidencias de exploração dos trabalhadores, nos termos da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e, segundo o jornal britânico, mais de 6.500 trabalhadores teriam morrido nas obras relativas à Copa do Mundo.

As autoridades do Qatar negaram a acusação, e uma grande polêmica foi instalada sobre o verdadeiro número – impossível de constatar. A Anistia Internacional denunciou a exploração grave de trabalhadores, como confisco do passaporte, calote de salários e situações de trabalho ao que chamaríamos análogas à escravidão. A Confederação Sindical Internacional, também, apontou para a falta de compromisso com os direitos humanos por parte do governo do Qatar. O relatório divulgado pelo Equidem aponta a vulnerabilidade dos trabalhadores neste contexto e a sistemática violação de direitos trabalhistas.

Após repercussão internacional, o governo do Qatar implantou melhorias em suas leis trabalhistas. Entretanto, a violação de direitos não se restringe aos trabalhadores. A respaldada organização internacional Human Rights Watch, que atua no campo de direitos humanos, lançou um guia de 50 páginas sobre as questões que envolvem os direitos humanos e copa do Qatar.

A homossexualidade é ilegal no país, passível de multa e prisão, com denúncias de maus tratos e abusos aos homossexuais, além de vigilância ilegal pelo rastreamento de suas atividades online.

A questão das mulheres parece estar sendo maquiada, afinal, haverá árbitras mulheres. Contudo, silenciam as condições de seus direitos. As mulheres no Qatar passam por um sistema de guarda, ficam sob tutela masculina e não podem tomar decisões de forma autônoma, tendo que pedir autorizações para seus guardiões, do sexo masculino, até mesmo para estudarem no exterior, ainda que sejam maior de idade.

O sexo fora do casamento também é criminalizado. A pena mais dura vai para as mulheres mulçumanas que podem ser condenadas ao açoitamento e apedrejamento. Nessas condições, denunciar um estupro é quase impossível, pois, se o homem disser que foi consensual, ela estaria cometendo um crime grave por ter relações sem ser casada.

A liberdade de expressão também é restrita no Qatar: jornalistas têm sido impedidos de trabalhar e denuncias apontam que o governo ofereceu pacotes com voos e ingressos gratuitos a torcedores, sob a condição da assinatura de um contrato com uma série de exigências, entre elas, cantar o que lhes for pedido e denunciar postagens de outros torcedores que possam ser críticos à copa do mundo no Qatar.

Tudo isso, e muito mais, me faz questionar se os brasileiros inflamados que romperam com familiares e amigos sob o pretexto de não compactuarem dos mesmos valores, conhecem essas graves acusações. Se conhecem, onde foram parar seus afetos intensos, convicções e o “ninguém solta a mão de ninguém?” Ou suas convicções só valiam para amigos e familiares?

É impossível não notar, o ser humano é um paradoxo bípede. Não incito um boicote à copa, há outras camadas envolvidas – geração de empregos, aquecimento da economia com bares e restaurantes a todo vapor, amplo empreendedorismo - penso na doceira animada por uma renda extra com seus doces confeitados de verde e amarelo; penso nas oportunidades de reconciliação de um povo machucado e inflamado; penso no merecido carnaval fora de época para povo brasileiro. Entretanto, convido à reflexão. Uma convicção extremista em outubro, prova viva da própria incoerência em novembro.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora