Não raro escuto lamentações de pessoas que se sentem, de certo modo, derrotadas por não terem cumprido um suposto “roteiro de vida”, não alcançaram o que socialmente se esperava delas em certa idade – o tal emprego dos sonhos, o romance açucarado, os filhos obedientes, nada disso chegou – e tal constatação parece deixar um gosto amargo de frustração.
Me solidarizo com suas dores. Entretanto, desconfio que não conhecem José Saramago. Ele, que nesta semana completou seu centenário. Ele, que fez da sua arte muito mais que a escrita, mas sua própria vida.
Ele, que me ensinou que podemos viver várias vidas nesta mesma vida.
Sim, suas temáticas literárias, repletas de alegorias, me ensinaram e me formaram, com ele aprendi que precisamos sair da ilha para enxergar a ilha; aprendi sobre o que pode emergir de nossas entranhas quando não mais nos enxergam; com ele aprendi a abominar qualquer desejo de imortalidade nesta Terra: o caos seria tremendo (os leitores de As Intermitências da Morte bem o sabem). Entretanto, nada se compara ao que aprendi conhecendo um pouco mais sobre sua própria vida.
Muitos conhecem sua importância na literatura, sabem que sua obra já foi traduzida em mais de 30 idiomas, já ouviram falar que ele foi o primeiro e único literata lusófono a ser laureado com o prêmio Nobel de Literatura. Tanto brilho, às vezes, parece ofuscar a vida pregressa... Será que conhecem que antes de ser conhecido como intelectual, ele foi serralheiro, mecânico, funcionário público, jornalista? Será que sabem que somente aos 53 anos passou a se dedicar com exclusividade à literatura? Que seu primeiro livro de sucesso só despontou quando tinha 60 anos?
O grande amor de sua vida, Pilar del Río, que segundo o próprio Saramago mudou sua vida por completo, veio aos 66 anos idade, alguém lembra disso ao falar dele?
Saramago sabia que podia viver várias vidas nesta mesma vida e, talvez, este tenha sido seu maior feito. Suas palavras nos convencem de sua genialidade, nos convidam a pensar outras possibilidades de mundo. Para Saramago, era improvável que o dito “estou muito velho(a) para isso” tivesse alguma força.
Seu exemplo de vida nos arrasta, nos convoca a compreender que, sim, é possível viver várias vidas nesta mesma vida. E, disto, não deveríamos abrir mão.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora
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