É fundamental ter dúvidas

Legenda: Não ter dúvidas é estar fechado ao progresso, ao conhecimento, à potencialidade do ser e do conhecer
Foto: Shuttestock

Benjamin Franklin disse, certa vez, que a morte é a única certeza da vida e, jocosamente, acrescentou uma segunda certeza: os impostos - pelo menos, até hoje, ele está certo nas duas. Apesar disso, curiosamente, na contemporaneidade, o ser humano busca, sobretudo, certezas. Para constatar essa afirmação, não é preciso sequer citarmos estudos científicos com metodologias rigorosas - basta que façamos, com o olhar, uma breve escaneada na sessão de livros mais vendidos das principais livrarias.

São vários os gurus que prometem receitas infalíveis, cada um com seus métodos “certeiros” que nos ensinam o segredo da vida, as 10 dicas para ter “sucesso”, ou o que não fazer se você pretende “chegar lá” - muito embora seja nebuloso onde esse “lá” se encontra.

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Custamos a entender que as 10 dicas que funcionaram para alguém “ser feliz” não necessariamente serão as mesmas aplicáveis à nossa vida. Consumimos as certezas das “10 dicas”, mesmo ignorando que elas foram feitas por um escritor estrangeiro, em outra realidade, outro contexto, sem suspeitar que, para um sul-americano, talvez não funcionem em nada. Não queremos acreditar que o mundo talvez seja mais complexo do que as certezas que cultivamos ao redor do nosso umbigo.

Para fermentar a vida, é preciso bem mais do que uma receita de bolo: é fundamental ter dúvidas.

Entretanto, são as supostas certezas que nos salvam dos desconfortos das dúvidas. Como nem sempre é fácil de entender, de julgar, de ponderar sob múltiplos aspectos, a vida tende a ser reduzida a verdades absolutas. A máxima “Se X, logo Y” parece tanger a vida de muitos, mesmo que por vezes sejam claras as incongruências. E, de fato, ter uma certeza e uma conclusão “lógica” não só nos conforta, mas também encerra o assunto - por mais ingênuo que essa conclusão possa ter.

Nos últimos tempos, que exigem espíritos ávidos por produtividade incessante e competitividade, parece que o cultivo de certezas recrudesceu ainda mais. Estamos imersos em um contexto - sombrio - em que muitos têm certezas e pouquíssimas dúvidas. Certezas são endeusadas e dúvidas demonizadas. Contudo, por mais contraditório que possa parecer, e mesmo que nem sempre seja saudável nutri-la excessivamente, a dúvida não merece um lugar de abominação, mas de benção, quase veneração.

Um raio em tempestades já foi tido como a “certeza” de uma manifestação divina, um castigo. Entretanto, alguém duvidou disso... estudos foram feitos e, hoje, temos eletricidade graças a essa dúvida primordial. Se existem, hoje, direitos de acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida, é porque alguém duvidou da “certeza” dos antigos modelos arquitetônicos, alguém duvidou do modo de conduta espartano de exclusão daqueles que não gozavam de plena saúde.

Se hoje existe psicologia clínica, é porque alguém duvidou da “certeza” de que a hipnose poderia tratar todos os transtornos mentais. Os progressos não são baseados em certezas, mas em dúvidas e, ainda que tenhamos outros incontáveis exemplos semelhantes ao longo da história, parece que não queremos abandonar a crença na imutabilidade das certezas.

Não ter dúvidas é estar fechado ao progresso, ao conhecimento, à potencialidade do ser e do conhecer. Entretanto, a dúvida traz em si um não-lugar: duvido que algo não seja o que me dizem, mas não tenho ainda meios de definir o que poderia ser. Assim, imersa em desconforto, cedo às certezas de outrem. Em prol do conforto e intolerância ao não-lugar proporcionado pela dúvida, testemunhamos nossa sociedade se dividir nas suas certezas e conceituar o Outro com base em suas próprias convicções.

Cada um tem absoluta certeza do que quer dizer “cidadão do bem”, “fascista”, “comunista”, “conservador”, “progressista”, “feminista”. Para nenhum deles parece ser possível cogitar que, na mesma expressão, há mais de um significado possível. “Você votou em fulano?” – a partir da resposta, e no alto do seu pedestal, o seu interlocutor pode ter certeza absoluta sobre a formação do seu caráter.

Essas certezas nos engessam, retiram o potencial transformador da dúvida, da noção de espectro, da conciliação entre opostos. Sem a dúvida, nos tornamos um rebanho tangido pelas nossas certezas - ou, ainda pior, pelas certezas alheias.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora