Como vou ser triste em 2024?

Nas redes sociais, o imperativo de felicidade ainda se faz presente

Escrito por
Maria Camila Moura verso@svm.com.br
(Atualizado às 15:41, em 09 de Dezembro de 2024)
Legenda: Trend do "como vou ser triste em 2024 se eu..." ignora a felicidade cotidiana
Foto: Freepik / Divulgação

Um “carrossel” virtual, repleto de fotos, listando momentos a serem celebrados: viagens, festas, aquisição de bens, perda de peso, tudo que possa, de certo modo, fomentar a ideia de que a balança de 2024 pendeu para o lado bom da vida.

Antes de qualquer coisa, fico genuinamente feliz se seu ano de 2024 foi bom, se, ao olhar para trás, você encontrou momentos a celebrar. Entretanto, na mesma medida, me intriga a assimilação irrefletida da nova trend “como vou ser triste em 2024, se...”. Não há particularmente nada de errado em compartilhar bons momentos, mas há muito o que se pensar sobre este comportamento que tem tomado os feeds de redes sociais de famosos e anônimos por meio da nova trend.

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Talvez, meu primeiro estranhamento seja o entrelaçamento entre felicidade e o registro fotográfico. Como vou fotografar, de modo espontâneo, aquele instante ao acordar após um sono bom? Ou aquele momento, após um dia exaustivo, em que ao chegar em casa, a retirada dos sapatos soa como uma grande conquista? O abraço da água quentinha do chuveiro, o prazer da primeira garfada em uma boa refeição, a alegria da mensagem inesperada de alguém querido não são registráveis em imagens.

Ao associar momentos felizes apenas com momentos fotografados, a trend ignora a felicidade cotidiana. Viver é um acontecimento, as pequenas alegrias ordinárias nos dão muito mais um senso de satisfação do que grandes conquistas pontuais e fotografáveis. É no ordinário da vida cotidiana que uma boa existência se constrói. Ademais, a associação de felicidade a conquistas, muitas vezes materiais, aponta para a ilusão social de que é preciso alcançar certos marcos para sermos felizes e isto vai na contramão do que a ciência já descobriu sobre a felicidade.

A partir de estudos cerebrais, com a mensuração de níveis de estresse, irritabilidade, assim como de prazer e satisfação, chegou-se àquele que hoje é considerado o homem mais feliz do mundo: Matthieu Ricard, cujo funcionamento cerebral tem sido estudado por universidades e cientistas.

Curiosamente, o homem considerado o mais feliz do mundo não alcançou este posto ao ter conquistado sua graduação, mestrado ou mesmo seu doutorado em biologia molecular sob a orientação de um ganhador do prêmio Nobel. Após anos de conquistas, principalmente acadêmicas, Matthieu abandonou o prestígio social que lhe era tão caro e se tornou monge budista. E foi assim, sem troféus a exibir, usando sempre o mesmo tipo de roupa, sem dinheiro e sendo celibatário, que a Matthieu Ricard alcançou sua paz interior. Para ele, a felicidade não pode ser alcançada em uma busca egoísta de conquistas, mas, ao contrário, a felicidade está profundamente relacionada à compaixão e ao altruísmo. Como fotografar a compaixão e o altruísmo?

Obviamente, não temos que seguir os mesmos passos de Matthieu para sermos felizes: a vida não tem script e a felicidade pode ser encontrada de diversas formas. No entanto, é inegável que a felicidade e a paz interior dizem muito mais de um modo de ver o mundo do que conquistas materiais e fotografáveis.

Esquecemos, com frequência, que, não raramente, pessoas com status social, ricas, magras, possuidoras dos mais diversos troféus, declaram publicamente sofrerem de depressão e, infelizmente, não são poucos os exemplos daqueles que, apesar de gozarem de grande prestígio social, desistiram de viver.

As conquistas de alguém, facilmente exibíveis nas vitrines das redes sociais, não são preditoras de felicidade. Sim, é possível ser profundamente triste ainda que você tenha um extenso rol de conquistas exposto em um carrossel de sua rede social. Por outro lado, é possível ser feliz, ainda que, no mosaico do seu ano, muitas peças remontem a momentos de tristeza. No viver, realmente, tudo cabe.

A ilusória associação entre felicidade e conquistas fotografáveis da trend fomenta, em muitos internautas, a comparação com outro e uma consequente tristeza. O mal-estar suscitado pela suposta felicidade alheia aponta tanto para o desconhecimento do que realmente pode trazer felicidade como, também, denuncia o egocentrismo de nossa sociedade, que se mostra ressentida ao pensar que o outro, talvez, tenha mais conquistas do eu. A (suposta) alegria do outro (ainda que sustentada em parâmetros duvidosos, como conquistas fotografáveis) tem despertado mais tristeza e comparação do que felicidade pela felicidade do outro. Isto denuncia o egoísmo entranhado em nosso seio social.

Sabemos, racionalmente, que o que expomos em nossas redes sociais é apenas um recorte de nossas vidas. Entretanto, este recorte é poderoso o suficiente para fazer os outros nos olharem como queremos ser vistos e, assim, muitas vezes, sem nos darmos conta, criamos uma personagem. O “ser feliz”, que se mostra nas redes, é muitas vezes fruto de uma autoficção que teatraliza a vida em todos os seus aspectos (familiar, profissional, acadêmica, hábitos, cultural, etc). Essa personagem, forjada para as redes sociais, que oculta momentos de tristeza e ressalta conquistas e “felicidade”, em vez de gerar admiração, cria um ciclo vicioso de idealizações no espectador: a grama do vizinho parece sempre mais verde. Paradoxalmente, a minha (suposta) felicidade gera infelicidade no outro.

Neste cenário, nos cabe refletir. De fato, como vou ser triste em 2024 se nas redes sociais o imperativo de felicidade ainda se faz tão presente? Como vou ser triste em 2024, se ao longo do ano publiquei apenas o recorte feliz de minha vida? É, parece que, mais do que nunca, é preciso manter a personagem.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora

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