Black Friday e a irracionalidade do consumidor

A maioria de nossas ações, enquanto consumidores, é bem menos racional do que pode aparentar

Legenda: Tendemos a seguir padrões de comportamento ditados pela maioria. Racionalmente, sabemos que economizaremos mais não gastando nada do que comprando pela “metade do preço” um produto que não temos necessidade, mas, como todos parecem estar comprando na Black Friday
Foto: JL Rosa

Nós, psicólogos, escutamos sobre as mais variadas pautas ao longo de nossos dias. Em uma mesma manhã podemos escutar sobre um caso amoroso, um filho que vai mal na escola, um chefe assediador, procrastinação, frustrações, enxaquecas, etc. Entretanto, é relativamente comum que pautas “virais”, que reverberam nas grandes mídias, surjam na fala de nossos pacientes. Costumo chamá-las de pautas coletivas – o paciente inicia falando sobre a notícia que reverberou na mídia e, à medida que fala suas impressões, aborda suas questões mais individuais.

Por exemplo, o tal caso de família envolvendo relações homoafetivas entre genro e o sogro, que ficou no trending topics desta semana, foi citado por muitos pacientes. A partir deste tema, uns trouxeram temas sobre o medo de traição, outros sobre famílias disfuncionais, outros sobre desejos homoafetivos reprimidos, enfim, cada um encaminha a notícia para sua própria pauta.

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Entretanto, nesta semana, fiquei surpreendida que a pauta coletiva mais citada na clínica não foi o caso de família envolvendo o sogro e o genro, não foi o cessar fogo entre Hamas e Israel, nem mesmo a passagem quase apocalíptica de Taylor Swift no Rio de Janeiro. A pauta coletiva mais comentada da semana foi a Black Friday.

Alguns citaram sobre possíveis desavenças familiares que teriam ao chegar a fatura do cartão, outros sobre as inúmeras horas gastas buscando produtos em promoção quando deveriam fazer outras coisas. Muitos confessaram reconhecer o excesso do consumo, que comprariam nesta semana coisas que não necessitavam, mas que “valeria a pena”, afinal, estariam em promoção.

Talvez, o que me chame mais atenção nesta pauta é como nós, de um modo geral, ainda carecemos de conhecimento sobre o comportamento do consumidor. Muitos não se dão conta que, enquanto consumidores, a maior parte de nossas ações é bem menos racional do que pode aparentar.

A irracionalidade nas ações humanas quanto à tomada de decisões é amplamente documentada e pesquisada. Em 2002, um psicólogo, chamado Daniel Kahneman, ganhou o Prêmio Nobel da Economia por seus estudos sobre “economia comportamental”. Kahneman demonstrou fartamente que nossas decisões, inclusive as que consideramos mais “racionais”, são, na verdade, nubladas por vieses e padrões de comportamento inconscientes que não controlamos.

Entender os mecanismos que acionam essas ações involuntárias, que transcendem a escolha racional do consumidor, é de extremo interesse para o mercado manter-se sempre aquecido com “ofertas irresistíveis”.

Já em 2017, Richard Thaler, mais um estudioso da economia comportamental, ganhou o Prêmio Nobel da Economia, desta vez ampliando o conceito de Kahneman para demonstrar que não só os vieses individuais, mas também diversas circunstâncias contextuais (ou seja, do ambiente externo) também são responsáveis por nossas escolhas. Juntamente com seu colega de pesquisa Cass Sunstein, ele cunhou o termo “nudge” (em tradução literal: “cutucada”), que se refere a algo do ambiente externo que, embora não seja uma ordem, se torna algo sugestivo para que exerçamos um certo padrão de comportamento.

Por exemplo, já notaram que muitas lojas possuem itens “baratos” ao lado do caixa? Em grandes lojas de departamentos costumam ser chocolates, balas, pilhas. Em lojas de esportes, a caminho do caixa podemos ter garrafinhas de plásticos, barras de proteínas, meias mais simples; em lojas de cosméticos, certamente, encontraremos perto do caixa ligas de cabelo, serrinhas de unha, um protetor labial.

Não importa o ramo, a regra é a mesma: colocar os produtos mais baratos da loja perto do caixa, momentos antes do pagamento, estimula em nós um padrão de comportamento automático, um rápido juízo matemático por meio do qual julgamos ser vantajoso comprar o que não precisamos: aquele produto tão barato, ali, parece irrisório frente ao preço do tênis que estou levando. Então, por que não levar?

O preço de um chocolate é tão pequeno comparado ao total da minha conta, não vai fazer tanta diferença... então, por que não levar? E assim, sem me dar conta, a disposição correta dos produtos - os mais nobres na vitrine, os mais baratos perto do caixa – me “cutucou”, me incitou a comprar mais. Antes de conseguir racionalizar sobre essa escolha, já estou efetuando o pagamento no caixa e não há mais tempo de voltar atrás.

Ao chegar em casa, vejo o que comprei e me espanto: por que achei que isso seria necessário? Posso pensar em trocar, mas não vale a pena, é tão baratinho, é burocrático... Afinal, o R$ 2,00 que gastei no caixa com um chocolate que não precisava não me empobreceram. Em escala macro, contudo, multiplicado o comportamento várias vezes ao dia, esse gatilho simples aumenta enormemente o faturamento da empresa em questão.

Outro exemplo sobre a irracionalidade de nossos comportamentos, trazido diretamente por Richard Thaler, e que nos ajuda a compreender o frisson da Black Friday, é o que vulgarmente chamamos de “efeito manada”. Vários estudos comprovaram que, em experimentos realizados com grupos de pessoas, ao serem instados a responder a um teste simples, os participantes do experimento, quando faziam o teste individualmente, raramente erravam. Porém, quando as respostas eram dadas coletivamente, quase 75% dos participantes decidiam acompanhar o grupo e cometiam erros que, individualmente, não cometeriam.

Enquanto ser social, nós tendemos a seguir padrões de comportamento ditados pela maioria – seja “a maioria” de um grupo específico, seja em um aspecto mais macro, como consumidores. Racionalmente, sabemos que economizaremos mais não gastando nada do que comprando pela “metade do preço” um produto que não temos necessidade, mas, como todos parecem estar comprando na Black Friday, parece “natural” que eu também deva aproveitar essa oportunidade de gastar o que sequer estava programado.

Importada dos Estados Unidos, esse “dia milagroso”, em que “tudo está de promoção a preços únicos”, passou a ser reproduzido no comércio brasileiro a partir de 2010 – nos primeiros anos de forma bastante tímida, mas, progressivamente, cada vez mais agressiva. Ano a ano, a Black Friday desponta com estratégias cada vez mais elaboradas, com abordagens psicológicas, para avivar vieses e gatilhos inconscientes.

As grandes empresas de marketing, que assessoram os grandes varejistas, estabelecem padrões propagandísticos que nos enlaçam, nos convencem, nos envolvem em uma teia em que nossos vieses inconscientes são estimulados. Esses padrões são replicados em larga escala por todo o comércio em geral. Somos convencidos a achar que a Black Friday é uma espécie de “agora ou nunca”, que um determinado produto, sem o qual nossa vida seguirá normalmente, é uma “oportunidade única”.

É como se estivéssemos nas prateleiras da fila do caixa, sendo bombardeados por opções sem tempo para racionalizar. Por durar apenas um dia, é estimulado em nós o que os marketeiros chamam de “gatilho de escassez”: ou seja, compre agora ou vai acabar, é apenas um dia, até durar o estoque. Isso cria em nós um senso de urgência – e nossa tomada de decisão se torna inteiramente neblinosa, passamos a acreditar que algo supérfluo ou inútil é extremamente necessário em nossas vidas simplesmente porque “vai passar a oportunidade de comprar”.

Acabamos comprando alguns produtos pela “metade do dobro” como se fosse uma oportunidade única: cada vez mais denúncias ao Ministério Público e aos órgãos de defesa do consumidor surgem contra empresas que aumentam vertiginosamente o preço de um produto semanas antes da Black Friday para que, no dia de hoje, o preço normal pareça algo extremamente vantajoso... Seguimos, por fim, o “efeito manada” explicado por Thaler: afinal, se todos estão comprando, deve ser vantajoso, “eu não posso ficar de fora”.

Portanto, compreender que nossas tomadas de decisões não são 100% racionais é o primeiro passo para não cairmos nas armadilhas do consumo impensado. Por mais contraditório que pareça, ao termos consciência de que não somos totalmente donos das nossas escolhas, teremos instrumentos melhores e mais eficazes para escolhermos e decidirmos melhor. Eu posso até concluir que tal promoção parece tentadora, mas, se eu vivia até hoje sem sequer sentir necessidade de um produto, por que agora parece que já não posso seguir sem ele? Saber que não somos racionais, e que deixar o tempo atuar é importante, pode nos ajudar contra as más-escolhas - e, no dia de hoje, nos salvar de muitos gastos desnecessários.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora