Há mais de cem anos Franz Kafka disse que “a tarefa da literatura é nos reconectar com sentimentos que de outra forma seriam insuportáveis de estudar, mas que precisam desesperadamente da nossa atenção”. Talvez seja por isto que, não raramente, nós, psicólogos, mencionamos alguns livros em setting terapêutico.
Por vezes, as vivências e afetos de personagens literários servem como um convite para um mergulho em si, para olhar o que há de mais escondido em nós mesmos. As ambiguidades e deslizes de personagens, por vezes, tornam mais palatável a nossa humanidade tão falha e ambígua – e quem, porventura, ainda não descobriu que somos paradoxos bípedes, talvez necessite de boas doses de literatura.
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Muitas vezes, o mau destino de uma personagem nos incita a revisitarmos nossas próprias escolhas, nos convida a reprogramarmos nossas rotas. Há livros tão potentes que nos despertam da letargia de uma vida inteira. Para Kafka, “um livro tem de ser o machado para o mar congelado dentro de nós” e um bom exemplo de “livro-machado”, sem dúvidas, é A Morte de Ivan Ilitch, do escritor russo Liev Tolstói, publicado há mais de 130 anos, mas que recentemente apareceu nas mais diversas páginas de fofoca como o possível “pivô” da separação de um famoso casal de músicos, juntos há mais de 20 anos.
Poucos dias antes de anunciarem o divórcio, uma das partes publicou em sua rede social um comentário sobre o livro. Disse que a obra lhe deu uma “chacoalhada” e compartilhou uma fotografia do seguinte trecho: 'Talvez eu não tenha vivido como deveria', ocorreu-lhe de repente. 'Mas, como se eu sempre fiz o que devia fazer?'.
Não acredito ser frutífero especular sobre a vida do casal. A união, assim como o rompimento, de um relacionamento – de famosos ou não – certamente conta com múltiplas variáveis desconhecidas por todos aqueles que não viveram a intimidade e a vida privada desse matrimônio. Entretanto, Ivan Ilitch merece nossa atenção por ser uma daquelas personagens que nos reconectam com sentimentos que costumeiramente ignoramos.
Ivan poderia ser considerado um modelo de sucesso de seu tempo – era um bom cidadão, possuía uma profissão socialmente valiosa, que lhe dava bons rendimentos, era elegante, possuía uma esposa e dois filhos. Entretanto, Ivan não se dava conta de como suas escolhas eram guiadas pelas normas sociais de seu tempo. Seus comportamentos, sua aparência, seu modo de agir, suas convicções políticas e até o seu casamento, diziam muito mais de uma conformidade com as regras sociais de seu tempo do que de seus desejos e afetos. Ordeiramente, Ivan Ilitch abdicava de suas vontades em troca de “fazer o que tinha que fazer”.
Ivan, portanto, assumia a bússola moral da sociedade de seu tempo como guia. Seus bons comportamentos não necessariamente eram frutos de uma reflexão moral ou de sua boa índole, sendo, na verdade, apenas resultado de uma tarefa social que lhe foi atribuída. Quanto mais alinhado aos padrões sociais, mais validado Ivan era – e a sociedade lhe concedia prestígio. Logo, sem qualquer reflexão crítica sobre o que fazia ou deixava de fazer, suas “boas ações” se perpetuavam em certo automatismo – inclusive na área conjugal. O casamento, para Ivan, também não remetia ao amor, mas a um mero dever social. Ivan vivia fazendo o que deveria ser feito, sem nunca olhar a fundo para os seus próprios afetos. Como um bom autômato, seguia na linha – com isso a sociedade lhe aplaudia e ele poderia colher os louros da sua conformidade com o mundo social a que pertencia.
Mas algo lhe arrebatou inesperadamente: uma doença mortal, que avançava progressivamente rumo ao fenecer do seu corpo. A proximidade da morte lhe trouxe uma dor moral intensa, um questionamento dilacerante: minha vida teve sentido? Então, é apenas em seu leito de morte que Ivan reflete sobre sua própria existência. Somente ao se deparar com sua finitude é que Ivan Ilitch finalmente compreendeu que ter vivido segundo as convenções sociais do seu tempo, não necessariamente, significava ter vivido bem.
Somente nas lembranças de infância Ivan encontrava algo agradável. Mas, à medida que crescia, a autenticidade de Ivan foi sendo apagada, o brilho social ofuscou o que havia de genuíno em si. Sua vida supérflua o desumanizou, tornou-o uma espécie de robô que fez aquilo que todos esperavam. Entretanto, como muito de nós, enquanto esteve imerso em seu cotidiano, rodeado de admiração, de trabalho, de vaidade, de troféus sociais, não percebia o quão vazia era sua vida, suas relações e o seu próprio trabalho tão prestigioso.
Foi a proximidade da morte que despertou Ivan Ilitch de seu alheamento de si. Infelizmente, não houve tempo de refazer suas escolhas. Mas Tolstói narrou esta história para que possamos compreender que a dor de Ivan Ilitch não precisa ser a nossa. Não precisamos nos deparar com a certeza da morte para que possamos refletir sobre nossas escolhas e até que ponto estamos nutrindo uma vida que vale a pena ser vivida ou apenas existindo irrefletidamente.
É claro que não podemos atribuir a uma obra literária – e a nenhuma obra de arte em geral – a responsabilidade por ser o “pivô” da separação de um casal. Esse tipo de afirmação revela apenas um desejo midiático e humano, demasiado humano, de tentar encontrar um culpado, justificar, de forma simples, algo complexo. Mas, como disse Kafka, a literatura tem de fato um poder transforma(dor) de nos chamar a atenção para assuntos incômodos, que muitas vezes preferimos afastar de nossos pensamentos – mas que são importantes e urgentes.
Tolstói teve o dom de conseguir nos dar de presente, em uma história tão curta, uma preciosa fonte de reflexão sobre o que queremos para a nossa vida e por que fazemos o que fazemos. A Morte de Ivan Ilitch, assim como outras de suas obras, nos desperta contra a alienação de nós mesmos. Ivan morreu para que nós, seus leitores, possamos viver mais genuinamente – e, por vezes, isso implica romper.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora