Toda “vida” tem sua trilha sonora. Qual a sua?

A música não é um mero entretenimento ou distração, ela narra histórias e pode resgatar grandes lembranças

Legenda: Música modifica mundos, rotas e destinos. É um alívio para a alma e um acalanto da saudade.
Foto: José Leomar

Nunca me dei muito bem com aniversário. A data me faz sentir estranho, nostálgico... Não sei como me portar, quais palavras devo usar ao agradecer as inúmeras felicitações e bons desejos. Em todo 3 de Julho me recolho nas inúmeras reflexões e memórias. Dizem que é melancolia, eu chamo de saudade! 

Para resgatar as lembranças, acordo cedo e visito as músicas que marcaram minha vida. Muito se engana quem acha que só as novelas e filmes que possuem trilha sonora. Toda história, verídica ou não, é musicalizada e posso provar. Existe sempre uma canção que nos faz lembrar de alguém, algum local ou até de nós mesmos em um tempo passado.

Música não é só áudio, ela aguça um lado afetivo. Tem cheiro, textura e sabor. Quando escuto “Fascinação”, por exemplo, sucesso na voz do grande Carlos Galhardo, sinto acariciar os cabelos finos e brancos da minha avó Carmelita, deitada em sua rede vermelha; e “Naquela Mesa”, de Sérgio Bittencourt, é visualizar a cara séria de meu pai almoçando na sala de casa.

As letras e suas melodias levam o ouvinte para mundos abstratos, incentivam os sonhos e fazem das utopias vivas em meio ao caos do cotidiano. É um respiro ou, pelo menos, uma forma de resgatar um pouco de essência, sentimento e poesia ainda habitantes em cada coração.

O amor, o sorriso e a flor

Há quem diga que eu nasci velho, talvez a frase tenha certa razão. Criança, quandos os amiguinhos aprendiam a cantar primeiro o “atirei o pau no gato” e “ciranda, cirandinha”, eu já cantarolava a clássica “Carinhoso” (Pixinguinha e Braguinha), engrossando a voz nos versos iniciais “Meu coração/não sei por quê”. Parece estranho, mas ali começava a trilha da minha vida.

No som de casa não dava outra, minha mãe colocava aos sábados os discos do Roberto Carlos, voz passou a me lembrar à infância no pequeno apartamento na Av. Visconde do Rio Branco, onde cresci. Lá tocava de tudo, inclusive a sofrida “Garçom” do Reginaldo Rossi (e que eu adorava). 

Diante de tantos reis, seja da Jovem Guarda ou do Brega, meu ídolo foi outro, Cauby Peixoto, que quando o ouvi cantando “Loucura”, me fez fazer jus ao título da música endoidando naquele artista tão fascinante. Dentro de tantas “Conceições”, “Tardes Frias” e “Pérolas e Rubis”, foi em “Bastidores”, de Chico Buarque, que encontrei um sentido para a vida

Aliás, devo muito ao Chico, que de tão presente no meu dia-a-dia que já dispenso sobrenome e o trato com intimidade. O compositor embalou alguns amores em “As Vitrines”, “Eu te amo”, “Tatuagem” e “João e Maria”. Porém, nem tudo são flores, e foi com “Joana Francesa”, “Atrás da Porta”, “Sem Fantasia” e “Choro Bandido” que também sofri uma boa dor de cotovelo.

A fossa sustentou boa parte da música brasileira, e ainda banca! Além de vender bem, é o sentimento mais universal. Uns recorrem ao sofrer das sofisticadas Dolores Duran, Maysa e Nora Ney. Outros preferem os mais cafonas como Odair José, Orlando Dias e Amado Batista. Cada qual com seu gosto, mas nunca sem uma canção como companhia.

Nunca esqueci de uma antiga paixão, daquelas superestimadas e pouco correspondidas. Ao escutar os versos do magnífico Francis Hime afirmarem “Minha, vai ser minha/ Desde a hora que nasceste”, me fazia viver uma história que nunca existiu mas não deixou de ser uma lembrança tão linda. 

Música é um portal para a liberdade e muitas interpretações. É uma ilusão que pode durar três minutos ou uma existência na eternidade. Um eco em corações ásperos na dureza da rotina nas selvas de pedras. Preciso do Luar do Sertão, da casinha branca de varanda, com quintal, onde eu possa plantar meus amigos, meus discos, livros e nada mais.

É preciso cantar!

 “Sem a música, a vida seria um erro”, a frase só reafirma a genialidade do Nietzsche. Em tempos de pandemia, onde a possibilidade de segurança é permanecer em casa e longe de pessoas queridas, são os versos com seus sons que me cercam como companhia, me transportam de lugar e tempo, mostram um novo “eu”, por vezes escondido, por outras esquecido.

Perdoe, caro leitor, se na melancolia de um novo ciclo fui falando mais de quem sou do que de música propriamente dita, mas acredito que toda pessoa, por mais ranzinza que possa ser, tem uma trilha musical que costura sua vida. É inevitável, a arte serve para comover, emocionar, renascer e eu faço questão de mergulhar nessa onda. 

Eu poderia muito bem terminar esse texto invocando Gonzaguinha e dizendo que “começaria tudo outra vez” ou que, apesar dos pesares, falar que “a vida é bonita”. Podia também rogar Caetano Veloso e a beleza do tempo. Até mesmo dá uma de Frank Sinatra e, ao gritar “My Way”, afirmar que fiz tudo do meu jeito. Não! Depois de mais um aniversário, só quero sentir o gosto das massas e das maçãs para continuar tocando em frente! Você quer vir comigo?

 


Assuntos Relacionados