“Tudo é divino, tudo é maravilhoso”, a frase de Caetano Veloso que décadas passadas ironizava o Regime Militar (1964-1985) pareceu não ser compreendida por todos seus colegas, inclusive os conterrâneos.
No sábado que antecedeu a marca de 450 mil brasileiros mortos pela Covid-19, a cantora Claudia Leitte, em um programa de televisão, ao ser questionada sobre o que a deixa indignada soltou a trágica resposta:
“A minha indignação? Eu tenho um coração pacificador. Eu me indigno, sou capaz de virar tudo pelo avesso, chutar as barracas, mas eu acho que todo mundo tem um lugar onde pode brilhar uma luz para desfazer o que está acontecendo. E se essa luz se acende, obviamente, não vai ter escuridão.”
O que te deixa indignado?
— Antonio Jaison De Souza (@AntonioJaisonD1) May 24, 2021
Claudia Leitte, Ana Maria e Deborah Secco no Altas Horas
Na vida não se posicione como a Claudia Leitte.
Indigne-se. Abra os olhos.
Positividade tóxica não é legal. pic.twitter.com/XYlStJleBH
O pensamento vazio e covarde revoltou as redes sociais. Em um cenário desesperador no qual o mundo passa, em especial o Brasil, não há motivo de revolta? Na verdade, as frases confusas da cantora baiana nada mais são que o silêncio de uma classe temerosa por perder a fama. Se anular até foi mais diplomático em um tempo passado, mas agora essa verdade não rima.
É tão inaceitável que sua colega (e concorrente) Ivete Sangalo já várias vezes foi escrachada nas redes sociais pelo mesmo esquivo em opinar. O mais incrível é perceber que as cantoras talentosíssimas, por sinal, vão de embate ao papel artístico que tanto prezam e fazem como profissão.
Analisando a música brasileira nesse milênio, composições feitas e artistas lançados, posso dizer que Claudia Leitte e Ivete Sangalo são grandes fenômenos do nosso cancioneiro popular. O entusiasmo das duas contagia milhares de fãs e, quando fogem do popularesco, conseguem ser ainda mais admiráveis.
Cláudia, por exemplo, inovou o repertório e acertou muito. Mesclou o pop com o romântico e deu um show mostrando potencial suficiente para seguir carreira em outros países. Consolida uma carreira madura, repleta de glórias e sucesso.
Quando menciono a também baiana Ivete Sangalo, não me poupo em rasgar elogios ao seu trabalho musical. Voz excelente, uma brasilidade fora do comum, fiel às suas origens, tão fiel que parece não querer sair da sua zona de conforto, o que não é uma verdade. Ela que é uma das rainhas do “Axé Music”, segue sendo uma das principais referências atuais de qualidade no país.
Diante tantos predicativos, a falta de compreensão em saber ser ídolo tem chegado fortemente nas duas e tudo tem seu preço. As vozes que garantiram sorrisos, beijos, amores e alegria por esse Brasil, silenciam a dor de um povo que não tem como ser mais escondida debaixo do tapete.
Jamais entenderei música ou qualquer manifestação artística como algo isolado de ideologia e identidade. Arte é a catarse humana! É a necessidade de fornecer uma expressão para o que parece abstrato. A música, por sua vez, carrega marcas do seu tempo, de uma história, do sonho que se modifica com base na mente do autor e intérprete. Negar isso é rasgar a profissão, desvalorizar o som de quem tanto lutou.
A falta de declarações necessárias e a isenção não abalaram a carreira das duas cantoras, mas desvirtuam o sentido de “ser artista”. Saber diferenciar a pessoa física da jurídica é um aprendizado diário e, mesmo discordando da covardia, sigo dizendo que elas são produtos fantásticos lançados pelo mercado fonográfico brasileiro.
Se calar diante da dor do outro é um absurdo. Tapar os olhos para não assistir o choro alheio é cruel. Isso não é adequado ao artista. Citei o nome das duas cantoras pela evidência de declarações, mas muitos calaram a voz para sujar as mãos de sangue.
Na Rádio Nacional, década de 1930, enquanto os utópicos eram mortos pelas tropas de Getúlio Vargas no “Estado Novo”, Linda Batista era coroada a Rainha do Rádio. Em 1965, quando um regime ditatorial militar se instaurava no país, o “Rei” Roberto Carlos cantava a bobinha “Splish Plash” na televisão. Tudo ia bem, tudo estava legal…
Após a polêmica, Claudia Leitte pediu desculpas em publicação nas redes sociais. Quando vi a manchete da notícia até pensei “nunca é tarde para entender a realidade das coisas”, infelizmente estava errado. Dentro do pedido de desculpas a cantora comete nova gafe dizendo: Eu faço entretenimento, mas faço com uma missão, com um propósito.
Música não é entretenimento, música é arte! Ela pode sim ocupar um espaço de entretenimento, mas não se limita a isso. Precisa ser compreendida dentro do seu papel identitário e social. A canção é um movimento de ideias, jamais pode ser entendida apenas como um objeto de consumo descartável.
O silêncio de Claudia Leitte, Ivete Sangalo e tantos outros, mostram que os ídolos têm de repensar seu papel como influenciadores massivos. No fundo, temos boas vozes, o que falta ainda é consciência para que ela ecoe muito além do que acha possível.
O Brasil precisa ser ouvido em seus mais longínquos e belos locais. É necessário escutar o que esse povo tão diversificado tem para falar. As artes dentro do seu papel social merece ser revista. Na verdade, discordo do Papa Francisco e afirmo: a falta de salvação do Brasil é a desvalorização da nossa cultura. Deixemos de dormir em berço esplêndido!