“Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. Essa virou uma das frases que embalaram dezembro de 2019. Os versos ironicamente representavam o desejo de tempos melhores, repletos de renascimento e prosperidade. 2020 então chegou e, em seus primeiros meses, marcou o mundo com o caos causado pela Covid-19. Momento trágico, vidas perdidas, recessão econômica, incertezas de futuro...Será que morremos novamente?
A resposta, por mais que pareça óbvia, não merece ser dita e sim pensada. O que vale mesmo enfatizar é nome do autor desses versos: o cearense Antônio Carlos Belchior, nosso eterno “Bel”. O compositor aniversaria nesta segunda-feira (26) e mesmo três anos após seu falecimento, suas músicas continuam sendo hinos para as mais variadas gerações.
Por seu coração selvagem, repleto de pressa de viver, Belchior mexeu no que existe de mais humano, porém não reconhecido. O medo da morte, a solidão dos que amam e a saudade de si próprio são marcas vorazes da sua passagem por esse planeta de desencontros.
Uma frustração pessoal é que mesmo conhecendo trechos de suas letras e os tornando como objeto identitário, tenho a sensação que esse reconhecimento veio de forma meio tardia. Ainda assim, o sobralense foi interpretado por um país e suas vozes.
De Elis a Ana Cañas
Belchior ensaiou ser padre e médico, mas a música era a vocação. Ainda nos festivais estudantis de músicas da Universidade Federal do Ceará, emplacou sucessos que seriam cruciais para sua carreira. “Mucuripe”, parceria com Raimundo Fagner, é exemplo disso, foi descoberta por Elis Regina, que emprestou sua voz para aqueles versos poéticos e dolentes.
A "Pimentinha", como era chamada, foi uma das maiores cantoras do país (muito provavelmente a maior) e um dos grandes apoios de Belchior no Rio de Janeiro. Além de oferecer estadia na sua casa, para o ciúme do marido César Camargo Mariano, a cantora lançou suas músicas em gravações divinas, como “Velha Roupa Colorida” e “Como Nossos Pais” no disco “Falso Brilhante” de 1972.
Outra cantora que deve um grande sucesso ao Bel é a querida estrela Vanusa, que em 1975 lançou o álbum “Amigos Novos”, no qual a primeira faixa foi “Paralelas”, letra e música do cearense. O que poucos sabem é que a canção foi inspirada na amiga Lúcia Menezes, na época aluna colegial, que mencionava sempre as aulas geometria e daí veio a ideia do título.
Além disso, a cantora conta que o primeiro verso seria “no karmann ghia a cem por hora”, mas pensando (ou profetizando), preferiu trocar a marca pela expressão “dentro do carro”. Ele queria que sua música pudesse ser cantada e compreendida por todos, independente de tempo e acertou em cheio!
Belchior é tão atemporal que resiste nas vozes jovens como a da cantora Daíra, que dedica sua carreira ao artista. No ano de 2016, com o lançamento do seu CD “Amar e mudar as coisas”, a moça de Niterói passou a interpretar somente as músicas do “nosso rapaz latino americano”. Vale destacar nesse trabalho as versões de “Conheço o Meu Lugar”, “Princesa do Meu Lugar” e “Coração Selvagem”.
Outro talento que compactou com a alucinação do Bel foi a cantora Ana Cañas. Nesta pandemia, resolveu navegar na onda e no seu primeiro show como intérprete, fez uma live em homenagem a Belchior. O show inclusive se repetiu ontem, celebrando o aniversário do cantor. Sua voz atraente e noturna fez de “Comentário a Respeito de Jonh” e “Fotografia 3x4” um retrato atual de um mundo que nunca muda e pede para rejuvenescer.
Muitas foram os gritos que compraram seus ideais. Muitos foram os olhares questionadores que se juntam a sua reivindicação. Há quem diga que até a Janes Joblin, com seu dedo em V e cabelos ao vento se apaixonou por Belchior, e embarcou na sua canoa pelos sertões da nossa alma.
Eu sou pessoa, palavra pessoa!
Belchior fez da divina comédia humana, viver absoluto. Alucinou-se no dia a dia, retratando o cearense em trajes de couro ou linho, o sertão do interior e a praia da capital. Foi humano suficiente para falar de medos, solidão e fúria.
Após longos anos fora de cena, caminhando pelo mundo, o compositor voltou para a “Terra do Sol” em última apresentação. Desta vez em silêncio, compartilhando das lágrimas de uma plateia triste, que lotou o Centro Cultural Dragão do Mar para um último adeus naquele fatídico primeiro de maio de 2017.
A morte pode significar o fim, Bel partiu antes de acabar. Deixou um legado enorme dentro de uma obra sólida. Cravou seu nome nos corações dos fãs, por meio de músicas que não envelheceram e talvez nunca envelheçam. Ele se reinventa em cada palavra que continua a ecoar por esse universo de sonho, sangue e poesia.