Compositor Brandão perpetua sua obra na imortalidade da cultura cearense

Falecido na última semana, o arquiteto transitou pela música, artes plásticas e poesia. Mesmo nascido no Piauí, artista ficou com seu nome marcado na história do Ceará

Legenda: Ilustração feita por Brandão para o movimento "Massafeira Livre", marco na história da música cearense
Foto: Reprodução

Há quatro anos, ainda estudante universitário, recebi a incumbência de fazer um trabalho documental sobre a vida do nosso eterno Belchior. O compositor tinha falecido e todas as homenagens seriam dadas de forma merecida. Saí colhendo depoimento de amigos, familiares, fãs, estudiosos da música. Naquele momento começaria meu mergulho no “Pessoal do Ceará” e seus integrantes.

Devido ao tempo corrido e o sofrimento dos colegas diante a partida do querido “Bel”, muitos compositores cearenses não me deram a entrevista em tempo hábil para o programa. Jovem estudante, me desestimulei, os “nãos” recorrentes me frustraram de alguma forma. 

Foi nesse cenário de desânimo e medo de não conseguir realizar aquele projeto que, em conversa com minha Tia Ana Diógenes e minha Madrinha Carmolinda Monteiro, recebi uma luz, na verdade, um número de telefone. Era o contato do Antônio José Soares Brandão, mais conhecido como Brandão, piauiense que marcaria o nome na cultura do Ceará.

Liguei, marquei a entrevista e fui recebido em uma quinta-feira em seu apartamento amplo na Rua Paula Ney. Brandão, assim como os verdadeiros intelectuais, disse que não sabia se tinha muito o que contar. Pura humildade ! A conversa durou por quase uma hora em uma aula sobre nossa história e vida.

Por tristeza do destino, em tempos de tantas despedidas, há oito dias demos adeus ao poeta, compositor, artista plástico, arquiteto...Brandão foi tantos, aliás, segue sendo uma “beleza” enorme aflorando em nossos olhos, ouvidos ou lembranças.

A vida quer um jeito de resistir”

O incansável pesquisador Pedro Rogério afirmou que dois ambientes foram fundamentais para o surgimento do “Pessoal do Ceará”: a Universidade Federal do Ceará e os Bares. Quando falamos da UFC, é preciso mencionar que o grupo começou a se formar no  início dos anos de repressão da Ditadura Militar.

Junto da censura forte da década de 1960, surgiram manifestos contestatórios do regime, o movimento estudantil seria um deles. Mesmo assim, com a liberdade castrada, as artes eram válvulas para se opor ao governo e driblar as proibições. Foi no diretório acadêmico de arquitetura da Universidade Federal que essas ideias viraram ações.

Três nomes seriam altamente representativos no curso, os então estudantes Fausto Nilo, Ricardo Bezerra e Antônio Brandão. Aquelas identidades, pensamento e utopias embalaram outros alunos do local como Rodger Rogério (acadêmico de Física), Petrúcio Maia (serviços sociais) e Ednardo (Química).

Antônio Brandão
Legenda: Compositor Brandão jovem em meados da década de 1960
Foto: Acervo Pessoal Brandão

Aqueles encontros não tinham hora para acabar, mas a Universidade precisava fechar as portas. Não dava outra, os bares lotavam daqueles jovens, seus desejos e sons. “O Bar do Anísio”, preferido deles, viria a ser palco de grandes momentos da música cearense.

Brandão era um dos mais novos do grupo estudantil. Recém chegado na faculdade, aos 17 anos, foi até desacreditado como artista, até mostrar uma de suas poesias anotada em um papel amassado ganhando assim a admiração de todos os colegas.

As velhas mesas do Anísio assistiram esse menino crescer. Foi em uma delas, por exemplo, que Brandão entregou a letra de Alazão para Ednardo que ali mesmo começou a montar acordes, concluindo somente no outro dia em casa. A música ficou tão boa que recebeu aprovação do próprio dono do bar.

Uma história curiosa sobre a letra é que o arquiteto já havia relatado em carta para Belchior que estava com vontade de compor uma canção com esse tema. Depois, por medo do sobralense ir na sua frente, se antecipou e correu para entregar logo os versos para o amigo Ednardo.

Foi com o colega que Brandão fez canções lindas como “Amor de Estalo”, “Boi Mandingueiro", “Classificaram” e “Vaila”. As parcerias foram muitas ! Da amizade com Rodger Rogério nasceu “Rodoviária” e com Ricardo Bezerra veio “Unilaterial”. Junto do Raimundo Fagner surgiram “Esquecimento”, “Dois Querer” e a preciosa “Beleza”.

Com o inesquecível Petrúcio Maia podemos citar “Pé de Sonhos”, “Falsa Correspondência”, “Estrada de Santana” e a genuína “Além do Cansaço” que diz: É preciso sair pelo mundo/ Procurando somente encontrar/ É preciso alcançar a aurora/ Que a noite teimou em fazer não chegar/ É preciso entender que a vida quer um jeito de resistir/ É preciso saber que agora/.

Muitos aplausos, Brandão!

Além dos versos, nosso poeta tinha outros talentos. As artes plásticas eram presentes de forma intensa na sua vida, a começar pelo curso que escolheu: arquitetura. Brandão fez ilustrações de festivais ainda nos anos de 1960. Suas habilidades eram tantas que ele foi o autor do inesquecível cartaz de anúncio do “Massafeira Livre”, festival chamado de Semana da Arte Moderna Cearense..

Antônio José Soares Brandão será imortal diante da sua importância para a nossa cultura. É uma partida dolorosa, mas um descanso para o poeta que precisa de outros ares para alçar novos vôos. 

Escrevendo estas linhas, caro leitor, foi impossível conter as lágrimas! Me fez lembrar daquele jovem estudante atento, ouvindo um grande mestre contar causos de sua trajetória musical, expondo sua inteligência em cada gesto. Siga em paz, inesquecível Brandão, perdão pelo atraso na homenagem, poderia ter sido ainda em vida, mas por ela também provo que caminha na eternidade. Muito obrigado !