Chuva segue ecoando como música para os sertanejos

De Patativa do Assaré a Ednardo, artistas cearenses retratam as dores e esperanças de ser nordestino

Legenda: Capa do álbum "Gonzagão & Fagner 2" (1987)
Foto: Reprodução

Assistir a chuva bater nos telhados, sentir aquele friozinho no início da manhã ou o cheiro do chão molhado sempre foi um momento de alegria para o cearense. Aos que moram na capital, o festejo nem se compara ao dos sertanejos do interior do Estado que vivem castigados pela seca árdua. Na última semana, essa alegria também se mostrou nos açudes que, ao sangrar, despejavam poesia e esperança pelo nosso Ceará. 

Mesmo sendo plural, o Nordeste sempre foi marcado pelas dores da caatinga, pobreza e desigualdade, como afirmou Euclides da Cunha, “um povo que é, antes de tudo, forte”. Ainda assim, essa perseverança que mistura dor e alegria foi a imagem explorada como produto cultural para vender a região no Sudeste do país.

Ainda dentro dessa projeção, a espera do nosso inverno como sonho de prosperidade foi tema de muitas das canções nordestinas que começaram a surgir a partir da década de 1930. Xote, forró ou xaxado? Pouco importa, vale é saber que vários dos intérpretes vestiram a (suposta) persona nordestina para alavancar a carreira.

Os cearenses encantados com a chuva

O “Rei do Baião”, eterno Luiz Gonzaga, foi exemplo disso. Sempre trazendo o chapéu de couro, o gibão e, sem esquecer, as origens cantou a severidade da caatinga que caminha sobre sua terra natal. 

A “Asa Branca” é o maior símbolo dessa ideia. A música foi feita em parceria com o compositor cearense Humberto Teixeira e se tornou o maior sucesso do pernambucano. Ela narra claramente a situação do sertanejo que, ao assistir sua terra arrasada pela seca, decide alçar nova vida no Sul, mas leva o Nordeste no coração. Outras letras remetem essa luta e esse olhar para a “água que cai do céu” como elemento de salvação. 

Na década de 1950 a imigração nordestina foi enorme, tudo por causa das condições climáticas que devastaram plantações e criadouros. Essa saída dos sertanejos de sua terra natal seguiu forte até 1980. Pesquisadores afirmam que cerca de 13% do Ceará foi tentar trabalho em outro estado neste período

Esse sofrimento e a ausência de possibilidades em São Paulo e Rio de Janeiro foi um dos principais temas da obra do cearense Patativa do Assaré.

O poeta, em seus inúmeros trabalhos, incorporou o sofrer de tantos irmãos e irmãs retratando a desilusão de viver em um território que não era dele, e sofrer até o fim por saudade das suas origens. 

Gonzagão musicalizou textos do Patativa como “Vaca Estrela e Boi Fubá”, na qual o eu lírico do poema afirma que não se acostuma a viver no sul, mas não tem outra escolha já que seu sertão segue sendo destruído pela seca, continuar lá seria sinônimo de fome. A música foi gravada pela primeira vez em disco do “Rei do Baião” com Raimundo Fagner.

Essa esperança de voltar só é realizada décadas depois na “Água Grande” de Ednardo gravada em 1974 no Longplay “Pavão Mysteriozo”. A letra fala de um retirante que ao sentar em uma das vias paulistas e sentir toda a frieza nos corações que corriam pela pressa, as águas da Praia de Iracema surgiram em sua mente o banhando de saudade. 

A letra termina com o narrador voltando para o Ceará, ao saber que pelo estado havia chovido e ele exclama provavelmente feliz: Adeus, São Paulo, também estou com pressa, está chovendo para as bandas de lá! Mais cearense impossível.

A água é sempre bem-vinda (?)

A chuva que sempre foi motivo de felicidade se reverteu em tristeza na canção do baiano Gordurinha chamada “Súplica Cearense”. A letra segue como prece diante a ingenuidade do sertanejo que ao assistir um temporal que destruiu as plantações, acha que a enchente foi por sua culpa que não rezou como se devia.

Com raras exceções, o inverno sempre foi bem-vindo no Nordeste, a chuva traz sempre o florir das matas, o nascer das vidas, a garantia de mais um ano em sua casa. Viver na condição de imigrante, sem terra, sem chão, sem identidade é de uma crueldade tremenda, mas foi esta que formou as grandes metrópoles desse país.

O suor de um povo construiu viadutos, arranha céus, parques, indústrias e, principalmente, pessoas. O sertão habita em todos nós e dentro de cada pedaço desse Brasil. Relembrar os sacrifícios e dilemas do nordestino, crava a luta por identidade e reconhecimento de um povo que não perde a fé em dias melhores.