Nas vésperas de completar vinte e sete anos, o compositor baiano Dorival Caymmi receberia uma de suas grandes alegrias. O presente antecipado foi o nascimento da sua filha Dinahir Tostes Fernandes, sua primogênita e que herdara do pai toda veia musical e brasileira.
Aquele bebê de choro manso e que ecoava vida na casa do compositor iria resplandecer sua voz muito mais. Em 1960 entra na carreira artística de forma oficial interpretando a composição “Acalanto”. A partir de então, longos caminhos seriam percorridos até o simbólico aniversário de 80 anos completos no último 29 de abril.
Talvez, caro leitor, você já tenha percebido de quem estou falando. Para esclarecer melhor, preciso dizer que não é pelo nome de batismo que a cantora conquistou os palcos. Dinahir virou Nana e há décadas defende um estilo sofisticado da música brasileira, de certa forma, saudosista das décadas dos boleros e sambas-canção.
Sua incoerência em pensamentos e declarações é completamente inversa a carreira consolidada nos qual desfruta em mais de sessenta anos. Mesmo não sendo uma das cantoras mais populares do país, é aclamada pelos colegas e respeitada pela crítica que lhe descreve até com certa admiração.
Filha de peixe é tubarão
Alguns artistas que são filhos ou possuem certo parentesco com nomes consagrados em sua mesma área de atuação buscam renovar o estilo e se desvencilhar da sombra familiar. Tal feitio aconteceu, por exemplo, com o nosso querido Gonzaguinha que fez das desavenças com o pai, o grande Luiz Gonzaga, um difusor em sua obra na carreira musical. Há quem nem saiba de tal relação entre os dois, de tantas as diferenças.
Nem todo mundo consegue a façanha. A talentosa Maria Rita, mesmo ainda tendo uma trajetória artística concreta, muito leva da sua mãe Elis Regina, seja pelo repertório, estilo, voz ou até pelo sorriso que vai “de orelha a orelha” se tornando marca das duas.
No caso dos Caymmi, o velho Dorival teve três filhos. Danilo, o caçula temporão, enveredou para a bossa nova e, ainda como influência de outros grandes mestres do nosso cancioneiro, segue na sombra na voz potente de seu pai. O mesmo ocorre com Dori, um dos mais geniais músicos brasileiros, que tem a imagem inevitavelmente ligada ao centenário baiano.
Nana, mesmo nunca negando as origens e regravando sempre as músicas de seu pai, parece que foi a que mais se mostrou independente de sobrenome entre os três. Jamais quero desmerecer os irmãos, mas a cantora capitalizou na voz o que há de mais sofisticado, intenso, sensível e poético do nosso romantismo.
Ainda que não desfrute de uma popularidade entre o público, Nana conquistou o ouvinte intelectualizado, conhecedor profundo da música brasileira, que sabe distinguir o que é comovente. Ela não erra, acerta em cada nota, desliza entre graves e agudos, plana dentre as partituras.
Interpretações antológicas de músicas como “Beijo Partido”, “Cais”, “Medo de Amar”, “Só Louco” e “Se queres saber” marcam toda a história de um país. A cantora desfruta da audácia de escolher seu repertório, sabe resgatar o passado e contesta o presente.
Na nossa memória afetiva
Como já afirmei, o nome “Nana Caymmi” não é lembrado pelo grande público comparado a outras cantoras que junto dela compõe o primeiro escalão do nosso cancioneiro popular. Ainda assim, sua voz permanece viva na memória afetiva do Brasil de outras formas, mesmo que não seja identificada a autoria.
Nas novelas, a filha do Caymmi foi recordista em trilhas sonoras. Desde 1965 com a “Não Tem Solução”, tema do folhetim “Suave Veneno” até “Flor da Noite” para a regravação de “Gabriela” em 2012, ela conseguiu emplacar até seu grande sucesso “Resposta ao Tempo”, composição primorosa de Cristóvão Bastos e Aldir Blanc, e que lhe cai como uma luva em uma interpretação dramática mas ao mesmo tempo suave como música tema da série “Hilda Furacão”.
Seus dois últimos trabalhos merecem destaque. “Nana canta Tito Madi” (2019) é a ideia perfeita e que representa bem o gosto de repertório da cantora. Resgata o compositor de excelência mas nem tanto rememorado, ela dá uma aula em faixas como “Chove Lá Fora”, “Carinho e Amor”, “Gauchinha Bem Querer” e “Balanço Zona Sul”.
No ano seguinte, ainda na pegada elitizada de escolha, a intérprete grava um álbum em homenagem ao Tom Jobim e Vinícius de Moraes, mas escolhendo letras não tão populares dos músicos e de uma beleza fantástica. É o caso de “Por Toda Minha Vida”, “As Praias Desertas”, “Serenata do Adeus” e “Modinha”.
Respondendo sempre ao tempo
“Batidas na porta da frente, é o tempo”, mas para Nana Caymmi será que existe amanhã? Renegando o novo, ela sempre busca transformar o passado, defendê-lo como utopia e sonho. Resiste como mulher e como profissional. Sofreu preconceitos dos mais diversos lados e nada nem ninguém conseguiu lhe calar.
A primogênita do velho Dorival passou quase uma década sem falar com o pai pois ele não aceitava seu divórcio. A mãe, nem se fala, passou um longo período com raiva da filha por casar com Gilberto Gil que é negro. Jovem na metade do século passado, criou seus filhos sozinha e até hoje sofre com o caçula João Gilberto que sofre de transtornos mentais além do vício da Cannabis.
Mesmo incoerente com seu conservadorismo exacerbado, Nana Caymmi também foi de vanguarda, lutou por seus direitos de liberdade e venceu. Celebrar seus 80 anos é festejar também a trajetória da música brasileira, é esperançar que essas grandes vozes prevaleçam na eternidade.