Em casa, quando não estava trepado no pé de seriguela lá no fundo do quintal ou jogando futebol de botão, era garantido: estava esparramado no sofá da sala, afundado na rede de dormir ou deitado de bruços no piso de cimento vermelho do alpendre, sempre com o nariz enfiado em alguma nova leitura.
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Adorava enciclopédias. Não tínhamos muito dinheiro, mas minha mãe, funcionária pública, servidora do INPS, comprava muitas delas, a prestação, dos vendedores que nos batiam à porta. A primeira coleção do gênero que recordo ter aparecido lá em casa foi a “Trópico”, da Livraria Martins Editora, em dez volumes com capas de cores diferentes, cada uma mais chamativa que a outra.
A “Trópico” trazia textos simples e informativos, acompanhados de belíssimas ilustrações desenhadas e pintadas à mão. Havia seções temáticas, incluindo minhas então favoritas: “História da humanidade”, “Biografias de personagens famosos”, “Mitologia grega”.
Também gostava muito da “Ler e Saber”, edição da mesma Martins, de oito volumes, em formato menor, com capas azuis de frisos e detalhes em dourado. Não tinha o charme e o impacto visual da “Trópico”, mas trazia uma deliciosa seção com resumos de grandes clássicos da literatura universal.
Foi na “Ler e Saber” que li pela primeira vez os nomes de Alexandre Dumas, autor de “Os três mosqueteiros”; Charles Dickens, das “Aventuras de David Copperfield”; James Fenimore Cooper, de “O último dos moicanos”; e Jonathan Swift, de “As viagens de Gulliver”.
De todas as coleções, a preferida era a Enciclopédia Disney, vendida em fascículos nas bancas de revistas. Quando encadernados, somavam nove imensos volumes, ilustrados com milhares de fotos e desenhos. No texto, os personagens de Walt Disney explicavam tudo de forma didática e divertida, em peripécias e diálogos que tratavam de assuntos que iam da botânica à tecnologia, da geologia à arte, da história à zoologia.
Havia ainda a “Delta Júnior”, de doze volumes, com capas alaranjadas, o conteúdo exposto na ordem alfabética, em verbetes — lembro do primeiro deles, “Abacate”, minha fruta predileta. Era a versão juvenil da espetacular “Delta Larousse”, de alentados quinze volumes, que ocupavam espaço nobre na estante da sala. Muito mais tarde, vim a saber que tinham sido editados por Antônio Houaiss, com a colaboração de uma extraordinária equipe de especialistas, nas mais diversas áreas do conhecimento.
Mamãe comprou também a “Novo Tesouro da Juventude”, da editora Opus, com dezoito volumes de capa branca, detalhes em azul. Nela, na seção “Livro da Poesia”, li uma tradução do poema “O corvo”, de Edgar Allan Poe, que me fascinou de imediato, mas quando relido à noite me roubava o sono. No “Livro dos Porquês”, havia perguntas do tipo que sempre me fazia: “Por que o mar não para quieto?” era uma delas. No “Livro dos Países e seus Costumes”, dei várias vezes a volta ao mundo, sem sair da pequenina Caucaia.
Comprada na forma de fascículos a exemplo da Enciclopédia Disney, tínhamos ainda a “Grandes Personagens da Nossa História”, da Abril Cultural, que formavam quatro volumes com relatos biográficos, acrescidos de um quinto, de belíssimos mapas históricos. O organizador daquela maravilha era ninguém menos do que o historiador Sergio Buarque de Hollanda, de quem, é claro, aos meus dez anos de idade, eu ainda não ouvira falar.
Além das enciclopédias, havia os livros infantis de Lobato e os de literatura juvenil da Ediouro – recordo ter amado, entre tantos, “Memórias de um cabo de vassoura”, de Orígenes Lessa – e as adaptações dos clássicos lançados pela Melhoramentos, dos quais li e reli, incontáveis vezes, “A ilha do Tesouro”, de Robert Louis Stevenson.
Diversão certa eram os “Manuais Disney”, da Editora Abril, cada um dedicado a um personagem e um tema específico. O Manual do Mickey versava sobre investigação policial e espionagem. O do Zé Carioca, sobre futebol. O do Tio Patinhas, sobre negócios e economia. O do Pardal, sobre invenções. O da Maga e Min, sobre magia. O do Peninha, sobre jornalismo.
O mais folheado era mesmo o “Manual do Escoteiro-Mirim”, do trio Huguinho, Zezinho e Luizinho, sobrinhos do Pato Donald. Mas eu tinha todos os demais. Minha mãe juntava os trocados e os comprava pelo sistema de reembolso postal: os volumes chegavam pelo correio, em lotes, depois de ansiosas semanas de espera.
Em seguida caíram-me às mãos os livrinhos da série Vagalume: “O escaravelho do diabo” e “O caso da borboleta Atíria”, ambos de Lúcia Machado de Almeida; “A ilha perdida”, de Maria José Dupré; e “Cabra das Rocas”, de Homero Homem. Bem mais deliciosos de ler do que os clássicos sisudos que nossos professores insistiam em adotar como paradidáticos — e no interior dos quais vinham encartadas aquelas intoleráveis fichas de leitura.
Quando eu já estava no oitavo ano do ginasial — hoje equivalente à oitava série do fundamental — meu professor de português, José Airton, atendeu aos nossos apelos e permitiu que daquela vez escolhêssemos os livros que quiséssemos. “Só não pode ser do Jorge Amado”, ressalvou. Quando perguntamos o motivo, respondeu: “Não é apropriado à idade de vocês”.
Tínhamos as obras completas do romancista baiano em casa. Com elegantes capas brancas e detalhes vermelhos na lombada, ficavam na prateleira mais alta da estante da sala. “Só pode ler quando completar 18 anos”, advertiu-me meu pai. “Não é coisa para menino de sua idade”, explicou-me, quase com as mesmas palavras de meu professor. “O autor é muito imoral; e comunista”, acrescentou.
A dupla advertência atiçou-me a curiosidade. Meu pai viajou e, em um momento de descuido familiar, surrupiei um dos volumes de Jorge Amado da estante, um dos mais fininhos. Enfiei-o dentro das calças e o levei para o quatro. Era “Mar morto”. Comecei a ler e não consegui parar. Durante alguns dias, fingia estudar, mas na verdade lia em êxtase a história de amor de Guma e Lívia, ilustrada pelas xilogravuras de Oswaldo Goeldi.
Certa manhã, ao entrar no quarto, mamãe flagrou-me com o livro na mão. De súbito, tentei escondê-lo debaixo da pilha de cadernos escolares. Desastrado que sou, acabei derrubando-o ao chão. Mamãe se aproximou, apanhou-o, conferiu o título na lombada. Depois devolveu-me o volume, buscando conter o indício de um sorriso no canto da boca.
“Acho que, na queda, desmarcou a página que você estava lendo”, ela comentou. “Pois tente achar de novo e termine de ler só mais um capítulo. O almoço já está quase pronto. À tarde, você continua”, ela disse, antes de sair do quarto, rumo à cozinha. De lá, vinha um cheiro bom de peixe cozido, desde sempre o meu prato preferido.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.