“O nosso inimigo não é externo, é interno”, disse Jair Bolsonaro, no último final de semana, com ares de quem denuncia uma assombração. “Não é luta da esquerda contra a direita, é do bem contra o mal”, completou, reforçando a lógica simplista e dual, amparada no maniqueísmo, que, a exemplo da ficção barata, divide o mundo, sem nuances e maiores problematizações, entre heróis bonzinhos e vilões malvados.
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As frases de Bolsonaro remetem à famigerada cartilha da doutrina da Segurança Nacional adotada, em plena guerra fria, pela Escola Superior de Guerra, por sua vez inspirada nos preceitos do National War College norte-americano. À época, tratava-se de identificar — e eliminar — o tal inimigo interno, representado pela fantasmagoria do “perigo vermelho”, alegada fonte de todo medo, infâmia e terror: o comunista, o subversivo, o carbonário.
Mas a ideia de um inimigo interno, malévolo e traiçoeiro, concebido com base em estereótipos, simplificações e clichês, é ainda mais antiga e manjada. Ao longo da história, foi evocada pelos romanos para se referirem aos cristãos — considerados a causa de desastres e tragédias naturais no império — e, depois, pelos próprios cristãos em relação aos judeus — acusados de matar Cristo, contaminarem fontes de água com o veneno da peste e fazerem rituais macabros e sanguinolentos com crianças católicas.
É preciso transfigurar o adversário em inimigo. O adversário, derrota-se. O inimigo, elimina-se. Romanos atiravam cristãos aos leões ou os pregavam na cruz. Cristãos queimaram na fogueira judeus e outros ditos hereges, além de presumidas bruxas e feiticeiras. Militares brasileiros torturavam e executavam presos políticos. Para justificar a carnificina, desumaniza-se o adversário, demonizando-o, atribuindo-lhe intenções pérfidas, instintos vis.
“Quando o inimigo não existe, é preciso construí-lo”, constatava Umberto Eco, em um texto célebre, “Construir o inimigo”. Em tempos de bolsonarismo, o inimigo interno é o imigrante pobre, o refugiado, o militante negro, o indígena, a feminista, o ambientalista, o intelectual, o artista, o educador, o jornalista, o quilombola, o sem-terra, o sem-teto, a comunidade LGBTQIA+. Todos eles, no universo mental e no discurso tosco do bolsonarismo, são ferozes esquerdistas, perversas encarnações do Mal.
O mesmo Umberto Eco, que escreveu aquele texto didático e magistral sobre a construção do inimigo, diagnosticou, em outro escrito lapidar, os modos de pensar, sentir e agir do que classificou como Ur-fascismo, um “Fascismo eterno”, essência totalitária subjacente a vários povos, tempos e culturas. Eco enumerou catorze características típicas da nebulosa fascista. É o caso de passá-las em revista, de modo sintético:
1) Tradicionalismo: recusa ao avanço civilizatório do saber, das ideias e dos comportamentos.
2) Irracionalismo: rejeição à modernidade, tida como sinal de depravação.
3) Anti-intelectualismo: suspeita declarada em relação ao mundo intelectual.
4) Acriticismo: ausência de pensamento crítico, consubstanciada na obediência cega ao líder.
5) Medo da diferença: desaprovação a qualquer manifestação de diversidade.
6) Ressentimento: frustração individual ou social ante a ascensão de grupos subalternos.
7) Nacionalismo: patriotismo simplório.
8) Ódio ao adversário, convertido em inimigo.
9) Estado de guerra permanente: a luta contra o inimigo deve ser incessante e inabalável.
10) Desprezo pela “fraqueza”: o poder deve ser mantido pela força dos músculos e das armas.
11) Culto ao heroísmo: a morte é preferível à derrota.
12) Machismo e misoginia: desdém pelas mulheres e condenação intolerante de hábitos sexuais não conformistas.
13) Populismo autoritário: o líder é o intérprete máximo do sentimento e das aspirações coletivas do povo.
14) Pobreza de vocabulário: uso de uma sintaxe elementar para impor limites ao raciocínio complexo.
Quantos itens da lista pareceram-lhe familiar, caro leitor?
De acordo com Umberto Eco, a despeito dos vários possíveis contornos, o Ur-fascismo combina tais características básicas, facilmente reconhecíveis. Hoje, o projeto totalitário brota no tecido do próprio regime democrático, corroendo-o por dentro, sob a cumplicidade e indiferença de muitos. “Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas formas — a cada dia, em cada lugar do mundo”, advertiu-nos Eco.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.