Um jovem cantor e compositor brasileiro que está conquistando Portugal

Legenda: Luca Argel é do RJ, mas mora em Portugal desde 2021
Foto: Foto: Divulgação

Foi bonita a festa, pá. Depois de mais de um ano trancafiado em casa para escapar à pandemia, fui desconfinar no Teatro Sá da Bandeira, a casa de espetáculos mais antiga aqui do Porto, para ouvir e aplaudir um brasileiro talentosíssimo — mas de quem o Brasil ainda pouco ouviu falar.

As medidas de segurança, ressalte-se, foram obedecidas à risca: toda a plateia usou máscara de proteção e sentou em cadeiras alternadas; a saída do público foi controlada por monitores, de modo a que fossem respeitados distanciamentos mínimos e evitadas eventuais aglomerações.

Depois de observar a sério o “lockdown” e avançar na política de vacinação em massa, Portugal gradativamente retorna a um estágio de relativa normalidade.E nada melhor do que comemorar tal conquista com um show admirável, “Samba de guerrilha”, que marcou o lançamento do quarto disco de Luca Argel, um tijucano que trocou uma pacata trajetória acadêmica por uma carreira artística em Portugal.

Graduado em música pela UNIRIO, ele veio fazer um mestrado em Literatura na Universidade do Porto e não mais retornou ao Brasil. Em vez de emendar o doutorado, começou a lançar discos — e livros, pois também escreve, e muito bem — um atrás do outro. Chegou a ser finalista do Prêmio Oceanos, um dos mais importantes da literatura em língua portuguesa, flertou com experimentalismos no álbum de estreia, mas tem se consolidado mesmo é como exímio letrista, cantor e melodista.

Para quem quiser conhecê-lo, recomendo qualquer uma das plataformas musicais de streaming, Spotify, Deezer, Apple Music ou Tidal, a escolha do freguês. Luca está em todas elas. 

Ele sabe dosar, em igual medida, sensibilidade e fina ironia, doçura e crítica social, lirismo e crônica de costumes. Inscreve-se, assim, em uma longa tradição do samba urbano brasileiro e desponta, nos melhores momentos, como uma espécie de Noel Rosa do século XXI.

Nesse aspecto, os discos “Conversa de fila” e “Bandeira” são meus favoritos, pela desconcertante leveza e pelo irresistível bom humor de seus achados poéticos e melódicos. Mas este recém-lançado “Samba de guerrilha” impressiona pela contundência do discurso, talvez de fato mais apropriada a tempos tão tenebrosos.

Na verdade, trata-se de uma antologia de sambas memoráveis, que têm em comum a temática política e a denúncia social. Aqui, o Luca Argel compositor cede espaço ao Luca Argel intérprete, que enfileira criações de Aldir Blanc, Batatinha, Herivelto Martins, Noca da Portela, Paulo César Pinheiro e Paulinho da Viola, entre outros.

O ouvinte mais desavisado não espere simples covers ou reverências nostálgicas às gravações originais. Luca as subverte e as desconstrói, com leitura pessoal, contemporânea e ousada. “Vá cuidar de sua vida”, de Geraldo Filme, por exemplo, transforma-se em um beat fervoroso, típico das batalhas de rappers, com a devida contribuição de Frankão — outro brasileiro, este vindo direto da periferia e das favelas do Rio de Janeiro para fazer música e trabalhos de educação artística em comunidades carentes de Portugal.

A propósito, no disco, as músicas são intercaladas por textos incisivos, lidos pela rapper Telma Tvon, angolana que passou a juventude nos subúrbios lisboetas, graduou-se em estudos africanos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e há pouco escreveu um romance, “Um preto bem português”, lançado pela editora Chiado.

No show da semana passada, no Teatro Sá da Bandeira, o momento mais emocionante deu-se quando Luca chamou ao palco Karla da Silva — que nasceu em Madureira e hoje também vive aqui no Porto — para cantarem juntos “Agoniza mas não morre”, do inesquecível Nelson Sargento. A bela voz de Karla — não deixem de conferir os excelentes discos dela também nas plataformas de streaming, em especial o álbum “Gente que nunca viu vai ver a pretíssima coroação” — arrepiou-me até a alma.

Por coincidência, era o dia do aniversário de Luca Argel. Depois do “bis” — exigido por uma plateia portuguesa entusiasmada, que o aplaudiu de pé por alguns minutos, até que retornasse ao palco —, ele teve direito a bolo, com sopro de velinha e tudo, à boca de cena. Como convém aqui em Portugal, o parabéns a você foi entoado com uma segunda parte: “Hoje é dia de festa/ Cantam as nossas almas;/ Para o menino Luquinha/ Uma salva de palmas”.

Nada mais apropriado. Sim, uma salva de palmas para o Luca, que pouco a pouco tem conquistado Portugal. Seu show lembrou-nos que, apesar de tantas dores e horrores, a arte nos redimirá da pandemia e dos pandemônios, estes nefastos inimigos da poesia, da inteligência e da cultura.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.