Quem ainda escreve cartas? Só os leves de coração

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O porteiro do prédio onde morei, à rua Julio Dinis — e de onde mudei há poucos meses — telefonou-me para deixar recado. Havia chegado carta para mim, no antigo endereço. Parecia algo importante, frisou. Não era comunicado de mala direta, folheto de propaganda, informe comercial em papel timbrado. Nenhum desses papéis inúteis que costumam nos chegar pelo correio e, sem que precisemos sequer nos dar ao trabalho de abri-los, vão direto para o cesto de lixo reciclável.

Dada a singularidade do envelope sobrescrito à mão, advertia o solícito porteiro, devia ser carta pessoal, mensagem íntima, correspondência privada.

Mas quem diabos ainda escreve cartas, endereçando envelopes à caneta, colocando-as no correio? — pensei. Em que século, afinal, estamos? Por que o remetente, seja lá quem for, não mandou-me e-mail, torpedo de SMS, recado no WhatsApp?

Como a antiga morada fica do outro lado da cidade, adiei o momento de ir buscar o tal envelope. Displicente, deixei passar os dias e, quando já quase havia esquecido do assunto, o porteiro voltou a me ligar, para deixar novo recado. Disse-me que não se importava em guardar a carta pelo tempo que fosse necessário, mas sairia de férias na semana seguinte e, sendo assim, o substituto poderia devolvê-la ao carteiro, pela ausência do destinatário.

Portanto, intimado a tratar do caso, venci a preguiça e, finalmente, fui até lá. O envelope branco que me foi passado às mãos era magrinho, de pouco volume. Trazia no alto do canto direito três selos postais azuis, idênticos, com a efígie da rainha Elisabeth, assinalados pelo carimbo do Royal Mail, o serviço de correios britânico.

No espaço reservado à identificação do remetente, em letra miúda, estava o nome de um querido amigo, Pablo Uchoa, que há anos mora em Londres e há algum tempo não vejo pessoalmente. Sigo Pablito — como gosto de chamá-lo — em todas as redes sociais, temos os números de telefone um do outro, de vez em quando trocamos alôs rápidos pelos aplicativos de mensagens.

Por qual motivo, então, ele recorrera ao tom solene de uma carta? A resposta estava na primeira frase que li, ao desdobrar a folha de papel que estava no interior do envelope. “Como as redes sociais nos dão apenas a impressão de estar em contato com os amigos, sem saber mesmo como vai a vida deles, resolvi apelar para a boa e velha carta pelo correio”, explicava-me Pablo.

Fiquei comovido com tamanha delicadeza.

Desarmei-me diante da materialidade de uma correspondência escrita com vagar e aprumo, algo tão insólito em uma época marcada por emoticons, frases truncadas, abreviações esdrúxulas nos textos curtos do “zap-zap”.

Não havia ansiedades, afobações, sentidos de urgências. Pablito apenas queria saber como eu estava e, ao final, compartilhar comigo notícias sobre projetos pessoais e profissionais.

Um desses projetos de Pablo é ver sua filhota, a pequena Olivia, crescer, enquanto ele próprio continua a alimentar o delicioso e sensível podcast “Histórias infantis de pai para filha”, que pode ser ouvido no Spotify e outras plataformas de streaming. Pois bem. Estou até agora lendo e relendo a carta escrita por Pablito.

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Reconstituo, mentalmente, o encadeamento de gestos e afetos intercalados entre o momento em que ele decidiu sentar para me escrever e o instante em que recebi o envelope das mãos do atencioso porteiro.

Imagino Pablito sentado diante da folha de papel em branco, preenchendo-a com demonstrações gratuitas de amizade, dobrando-a para colocá-la no envelope, caminhando de casa até o posto do correio, comprando e colando os selos azuis e, ao final de tudo, retornando para ler mais uma historinha a Olivia, enquanto aguardará minha resposta, sem cobrar-me celeridade ou atropelos.

O imediatismo da comunicação virtual privou-nos destes belos rituais de afeição, paciência e espera.
Obrigado, Pablito, por me devolver a poesia que existe na lentidão e na sábia recusa à velocidade e ao alvoroço dos dias.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.