Confissões de um ex-poeta que decidiu deixar as musas em paz

Foto: Master1305/ Shutterstock

Em minha geração, entre os colegas e amigos de juventude, quase todos nós considerávamo-nos poetas. Eu próprio cheguei a cometer versinhos — na maioria, infames —, para depois publicá-los em folhetos mimeografados e xerocados. Vendia-os pelos bares e botequins da cidade. Não raro, trocava-os por copos de cerveja. Ou os vendia pelo preço da passagem do ônibus suburbano que pegava para ir de casa, no Quintino Cunha, à praça da Estação, de onde então seguia a pé pela Castro e Silva até chegar à Faculdade de Filosofia de Fortaleza, a extinta Fafifor.

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Inspirava-me nos rescaldos da chamada geração marginal, assim autodenominada por ter se colocado à margem do mercado oficial de livros e livrarias. Aos vinte anos, no início da década de 1980, eu era um entusiasta tardio da contracultura. Assumia um estilo anárquico e riponga, bicho-grilo de barbas e cabelos crescidos, camisas artesanais compradas no mercado central, boina à cabeça, chinelos de couro, bolsa de algodão cru à tiracolo com o rosto de Che Guevara estampado em serigrafia. Amava a poesia de Leminski, Chacal e Chico Alvim — três expoentes originais do gênero que, rompendo a lógica até então vigente, já eram veiculados por uma grande editora, a Brasiliense.

Meu primeiro livreto, rodado em mimeógrafo, recebeu título pouco criativo, “Poesia & Poesia”. O pretenso sentido estava sugerido nas tipologias distintas escolhidas para a capa, mesclando fontes metidas a elegantes, decalcadas de cartelas adesivas, com simulações de pichação de rua, garatujadas à mão. Felizmente, não guardo nenhum dos 50 exemplares que, de modo imprevidente, ousei publicar.

Se, por acaso, algum bom amigo tenha um deles guardado no fundo de velha gaveta, peço-lhe uma gentileza: em nome de nossa amizade e do bom gosto, mantenha tal estrupício na justa obscuridade.

Depois veio “Girassol marginal”, pequeno volume um pouco menos mal-ajambrado, impresso com tipos móveis de chumbo em uma tipografia do centro de Fortaleza, situada à 24 de Maio, próximo à clínica de abreugrafia na qual eu trabalhava, lá na Tristão Gonçalves. Na capa, uma colagem de manchetes de jornais locais, privilegiando notícias grotescas, apelativas ou disparatadas. Cheio de gralhas e erros de revisão, o conteúdo poético da “obra” incorria em diversos atentados ao vernáculo.

O que não a impediu de receber à época uma positiva e inesperada resenha nas páginas deste Diário, assinada pelo jornalista e professor Luís Sérgio Santos, então editor de cultura do jornal. Quando lidos em um evento no auditório José Albano, da Universidade Federal do Ceará, certos versos do “Girassol” arrancaram comentários condescendentes por parte do professor e poeta Artur Eduardo Benevides, membro da Academia Cearense de Letras. Dupla e imerecida glória.

Em seguida, veio “Gamões & fliperamas: poemas biodegradáveis para lavar a alma e a burra”, xerocado, com direito a um “quase prefácio” do escritor Airton Monte: “Lira Neto é um poeta com tesão na poesia”. Formulação que àquele tempo soava provocativa, iconoclasta. O livrinho — na verdade quatro folhas A4 dobradas duas vezes — incluía “Sementes de tamarindo”, uma versalhada ingênua que sabe-se lá por qual motivo ganhara um festival universitário de literatura.

“É preciso desbundar a poesia, despirocar a literatura”, bradei — ao receber o anúncio do prêmio —, para espanto geral da plateia e constrangimento unânime do júri. Talvez por isso, em represália, tenham demorado tanto a me conceder a premiação prometida no regulamento: uma passagem aérea de ida e volta a Salvador. Eu, que nunca viajara de avião antes, acabei não voando também naquela oportunidade. Não conhecia nenhum possível anfitrião na capital baiana e nem tinha dinheiro para bancar uma diária de hotel, por mais modesta que fosse a espelunca. Deu “no-show”.

Outro poeminha-pílula de “Gamões e fliperamas”, intitulado “Memórias de um voo interrompido” — “Não ria,/ alguém anotou a chapa/ dos seus dentes” —, acabou musicado pelo jovem maestro e querido amigo Elvis Matos. Chegou a ser gravado em disco pelo coral regido por Elvis, o Zoada, que sempre nos brindava com apresentações irreverentes no circuito universitário de Fortaleza.

Em algum momento, não lembro ao certo qual, também perpetrei uma tiragem limitada de vinte exemplares de um tal “Suspiros urbanos”, quatro ou cinco micropoemas xerocados, acondicionados dentro de um saquinho plástico e, à guisa de trocadilho, acompanhados por dois prosaicos suspiros — isso mesmo, os docinhos feitos de clara de ovos e açúcar. Por fim, veio “Roteiro dos Círculos”, igualmente xerocado, poema circular, dividido e numerado em pequenas partes, inspirado no “Menino experimental”, de Murilo Mendes.

Era a época dos grupos literários em Fortaleza (que hoje seria chamados de coletivos), a exemplo do Comboio e da Nação Cariri. Pois eu e dois queridíssimos amigos, Kelsen Bravos e Liduina Fernandes, fundamos nosso próprio grupo. Por falta de um nome original, ele jamais foi batizado, passando a ser referido por nós, por isso mesmo, como grupo Pagão. Para sorte nossa, o Pagão permaneceu inédito e natimorto, evitando vexames e arrependimentos retroativos.

Afora isso, reuni toda a bobageira que havia escrito até ali e elaborei uma espécie de antologia, “Canção subterrânea”, que mereceu menção honrosa no antigo prêmio literário anual da Secretaria de Cultura do Ceará. Nenhum grande mérito nisso. Vinte outros trabalhos receberam idêntico beneplácito naquele mesmo ano, o que levou a imprensa da época a ironizar a banalidade da tal “chuva de menções honrosas”.

Por falar em chuva, no meio disso tudo houve ainda duas “chuvas de poesia”, das quais participei como um dos organizadores. Do topo do edifício São Luiz, na praça do Ferreira, atiramos milhares de panfletos poéticos sobre as ruas do centro. A enxurrada rendeu simpáticas matérias de jornal. Mas, ecologicamente incorreta, foi um desperdício de papel que abarrotou as calçadas, entupiu bueiros e deve ter representado imenso trabalho aos lixeiros da cidade.

Com o tempo, criei juízo. Resolvi deixar a poesia em paz. Fui ser jornalista. As musas, imagino, agradeceram, profundamente aliviadas.

 

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.