O que mudou na aviação mundial após o acidente da Air France?

Legenda: Destroços do avião da Air France A330
Foto: Aeronáutica/Divulgação

A Justiça francesa absolveu, nesta semana, a Air France e a Airbus pelo acidente com o voo AF-447, do Rio de Janeiro a Paris. Assim, tanto a operadora quanto a fabricante foram inocentadas da acusação de homicídio culposo, quando não há intenção de matar.

O acidente ocorreu em 31 de maio de 2009. O choque da aeronave com o oceano se deu provavelmente às 23h e 14min (horário de Brasília) e vitimou 228 pessoas, 212 passageiros e 12 tripulantes. Dentre estes, 58 brasileiros.

A aeronave era um ultratestado (mundo afora) Airbus A330-200, muito utilizado (hoje em dia) em Fortaleza por companhias como a TAP e a própria Air France para voos de longa distância.

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O relatório final do acidente emitido pela autoridade aeronáutica francesa de investigação (BEA) foi em 06/07/2012. No documento, a autoridade francesa cita combinação de tubos de Pitot falhos, sistemas da aeronave com sinais confusos e falta de treinamento apropriado dos pilotos que levaram ao acidente.

Mesmo com o contexto acima, Air France e Airbus foram inocentadas: “não se pôde demonstrar relação de causalidade” com o acidente, segundo a Justiça francesa.

A decisão causou muita controvérsia e revolta entre Sindicatos de Pilotos e Familiares das vítimas ao longo da semana.

Legenda: Destroços do Airbus A330 da Air France
Foto: AFP

O que mudou na aviação com o acidente?

Na época, investigadores franceses não conseguiam pensar no que poderia ter derrubado um dos aviões mais modernos já construídos, dado que era o primeiro evento que fazia vítimas fatais num A330-200. Assim, começaram a supor que uma bomba poderia tê-lo derrubado: um ataque terrorista. Supor o ataque era implicitamente um exercício de muita fé na qualidade da aeronave.

Infelizmente, como se depreende abaixo, o avião precisava de muitas melhorias na verdade. Num acidente de tamanhas proporções como o AF-447, é comum que se comente que o mínimo que pode ser feito, por respeito às vítimas, é aprender o máximo possível com as causas do acidente de forma a que nunca mais se permita que algo semelhante aconteça.

E o AF-447 mudou a aviação, dado que trouxe muitas melhorias para a segurança das operações com repercussões globais.

  • Melhor compreensão do processo de obstrução de tubos de Pitot por cristais de gelo;
  • Melhoria nos alarmes de perda de sustentação (STALL);
  • Novos procedimentos para o tratamento dos casos de perda de sustentação (STALL), com ênfase clara no controle de velocidade do avião;
  • Melhorado o projeto dos sensores de ângulo de ataque do A330, que passaram a permitir que se monitore o “caminho” até a perda de sustentação;
  • Desenvolvimento de novo programa de treinamento para os Pilotos com ênfase para voo manual em altas altitudes, em lógicas de controle diferentes;
  • Ampliação de 30 para 90 dias o período mínimo de funcionamento das antenas que transmitem a posição de aeronaves que sobrevoem áreas marítimas, de forma a se ter por mais tempo, a indicação da localização de destroços.

O que aconteceu?

Segundo o relatório do voo, o AF 447 atravessou regiões com extensas e potentes camadas de nuvens, a chamada ZCIT (Zona de Convergência Intertropical - sistema atmosférico que afeta bastante a pluviometria do Ceará. 

Os tubos de Pitot da aeronave foram obstruídos por cristais de gelo de forma que as indicações de velocidade não estavam mais corretas nos computadores do avião. Os tubos de Pitot são dispositivos que medem a velocidade do ar através de tomadas distintas de pressões, imprescindíveis ao desenrolar do voo.

Foto: Arquivo/Diário do Nordeste

Com a perda da indicação de velocidade, o piloto automático e o controle automático de potência dos motores se desconectaram, já que não conseguiam mais obter valores coerentes de velocidade e controlar a aeronave (“perder” o piloto automático e o controle automático de velocidade não é crítico para o voo, dado que os pilotos deveriam voar a aeronave manualmente). Da mesma forma, a lógica de controle do avião mudou para um estado em que a aeronave não estava mais protegida (eletronicamente) de perder sustentação.

Ademais, pela falta de costume de comandar o voo manualmente em grandes altitudes, os inputs que o piloto herdou o comando (Pilot Flying) conferiu à aeronave fizeram-na perder a estabilidade. O piloto que voava, o menos experiente dos três a bordo, não cessou de provocar uma tendência de movimento ascendente à aeronave, bem como realizar movimentos bruscos no sidestick (joystick de controle).

Com o comando de “nariz para cima”, a aeronave subiu até um ponto que alarmes de perda de sustentação soaram. A perda de sustentação ocorre quando o avião está com elevado ângulo de ataque (muito embicado para cima) em relação à corrente de ar, provocando o descolamento do ar das asas: perda de sustentação. 

Já falamos sobre Stall aqui

Estranhamente, com todos os sinais que indicavam perda de sustentação como alarme contínuo de STALL e a ocorrência de buffeting (vibração aerodinâmica advinda de vórtices de ar que descolam da asa), os pilotos não realizaram medidas relevantes de recuperação. O esperado seria jogar o nariz do avião para baixo (movimento descente), ganhar velocidade, recuperar sustentação e reestabelecer o voo estável-nivelado.

Após longos segundos de queda com alta taxa de velocidade vertical, finalmente perceberam que deveriam jogar o nariz da aeronave para baixo. Quando fizeram, o alarme de STALL voltou a soar na cabine: uma grande infelicidade, já que, aparentemente, tanto jogar o nariz para cima, quanto para baixo (naquele momento do incidente) faziam o avião perder sustentação. Certamente, os pilotos estavam totalmente desnorteados, sem consciência situacional (o ressoar do alarme de STALL era deficiência do sistema da aeronave).

Desde a perda do piloto automático até a colisão com o mar, não se passaram 5 minutos.

Mau tempo

O piloto que guiava o avião (Pilot Flying) informa várias vezes ao capitão da aeronave (Comandante), a vontade que tinha de levar a aeronave para níveis de voo mais elevados, porém, já estavam no nível ótimo de voo, chamado de OPTI FLIGHT LEVEL (35.000 pés, 10.600 metros). O OPTI FLIGHT LEVEL estava mais baixo que o normal, dado que a temperatura externa estava “quente” para o padrão.

Legenda: Foto satélite da ZCIT em momento próximo ao do acidente (detalhe da rota do AF-447)
Foto: Reprodução/BEA

Dessa forma, subir mais, que teria sido uma maneira de se afastar do centro da tempestade, não foi uma opção, porém isso não foi o que causou o acidente!

Alternativamente, podemos sim dizer que a causa inicial de toda a fatalidade foi a perda de velocidades confiáveis, causada pelo entupimento dos tubos de Pitot, causada pela travessia de regiões com cristais de gelo.

Tubos de Pitot

Com a ocorrência de outros casos de perda de indicações de velocidades (anos antes ao acidente), a Air France reportara à Airbus (fabricante) sobre os incidentes e pedia assessoria para resolver o problema.

A Airbus informou que o motivo era a obstrução dos tubos de Pitot por cristais de gelo, de forma que sugeriu à Air France a substituição dos tubos de Pitot por outros modelos mais robustos. Assim, a primeira substituição de tubos na Air France ocorreu menos de 10 dias antes do acidente, porém, em outra aeronave.

Entretanto, a Air France avisou aos pilotos um mês antes do acidente através de documento técnico interno que processaria a substituição dos tubos, bem como alertava às equipes sobre o que fazer nos casos de UAS - Unreliable Air Speed (indicações de velocidade não-confiáveis), causadas pelo entupimento dos Pitots.

Os pilotos do AF-447 responderam muito mal, portanto, ao caso pelo que passaram. Isso não é, na minha opinião, salvo-conduto para Airbus e Air France, dado que há claros sinais de treinamentos insuficientes e problemas como alarmes deficientes, indicações espúrias nas telas de comando (caso do Flight Director), para dizer o mínimo.

O que não aconteceu?

Muito se especulou à época que a meteorologia fora fator determinante para o caso. O relatório oficial cita que o tempo na região do acidente contava com muitas células de convecção e cita várias vezes as perigosas nuvens cumulus nimbus, e clusters (aglomerados) de cumulus nimbus.

Adicionalmente, nas conversas, porém, os pilotos conversaram muito sobre as dificuldades naturais para cruzar a ZCIT, porém nunca evitaram desviá-la para economizar combustível, como se especulou.

Assim, as condições meteorológicas não eram excepcionais, extremas. O AF-447 não passou por turbulências severas que tivessem levado a aeronave a se desestabilizar. O relatório até acredita que, por isso, não precisaram desviar tanto da tempestade.

Adicionalmente, o fato do Capitão da aeronave (o mais experiente piloto presente), ter deixado a cabine antes do início da travessia da ZCIT não pode ser apontado como fator crítico para o acidente. 

Talvez por isso, na iminência de cruzar a camada Zona de Convergência Intertropical, o Capitão escolheu tirar seu descanso. Após inúmeras travessias da ZCIT, a sua única preocupação parecia ser se a turbulência atrapalharia seu descanso. 

Deve-se ressaltar que após a perda do piloto automático, o comandante foi novamente chamado à cabine e chegara em menos de 1 minuto e (também) não conseguiu elucidar como reestabilizar a aeronave.

Legenda: Características do A330
Foto: Reprodução

Fatores Humanos no acidente

Segundo o Psicólogo de Aviação pelo Instituto de Psicologia da Aeronáutica e Piloto José Erasmo Melo, “o que aconteceu com o Air France é inacreditável”.

“No caso, os pilotos não demonstraram perceber em tempo hábil as indicações de potência e velocidade da aeronave, parece-me que a atenção deles ficou fixa em um elemento central, o indicador de altitude (horizonte), na tentativa de colocar a aeronave num ângulo: porém, cada um acionou o comando em sentido oposto o que pudera ter anulado o efeito aerodinâmico desejado”, completou José Erasmo.

Erasmo Melo ainda complementa: “No caso específico, fica evidente que não houve coordenação adequada, CRM, Crew Resource Management.”

“O deficiente treinamento não os fez perceber a gravidade da situação. Nessa situação, o comandante deveria ter assumido imediatamente, o processo de tomada de decisão foi nulo”, finalizou. Por fim, sentencia: “o fator humano em meu ponto de vista foi o único responsável pela tragédia”, em consonância com a decisão da justiça francesa.

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*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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