As brechas da regulação aeronáutica: o que está por trás da disputa sobre as malas de mão?
A Câmara dos Deputados aprovou, nessa terça-feira (28), projeto que garante aos passageiros o direito de levar gratuitamente uma bagagem de mão de até 12 kg e um item pessoal, além de despachar uma mala de até 23 kg sem custo em voos domésticos.
Se a bagagem de mão não couber no bagageiro, deverá ser despachada sem cobrança. A regra também valerá para voos internacionais operados no Brasil. A proposta ainda seguirá para o Senado.
A discussão ganhou força após duas companhias lançarem tarifas para voos internacionais que permitem apenas bolsas ou mochilas na cabine, sem mala de mão, o que gerou reação do Congresso.
Mas por que essas companhias reduziram os direitos dos passageiros apenas em voos internacionais? Podemos pensar em alguns motivos estratégicos.
Pressão econômica
Em voos internacionais, o custo operacional é mais alto devido ao contexto de dolarização e à intensa concorrência com empresas estrangeiras, especialmente companhias ultra-low cost que operam no Brasil, como a JetSmart e a Sky Airline, entre outras.
Essas empresas estrangeiras só deixam de cobrar pela bagagem se o item tiver menos de 10 kg e couber sob o assento à frente do passageiro. Claramente, Latam e Gol estão reagindo a esse movimento. A cobrança pela bagagem de mão é uma forma de aumentar a receita acessória sem elevar o preço base da passagem.
Por exemplo, a Gol lançou recentemente uma nova tarifa chamada Basic, com a proposta de oferecer preços mais acessíveis em viagens internacionais.
Nessa modalidade, o passageiro pode levar apenas uma bolsa ou mochila (item pessoal) de até 10 kg, com dimensões máximas de 32 cm de largura, 22 cm de altura e 43 cm de profundidade, que deve ser acomodada sob o assento à frente.
A Latam, desde outubro de 2024, também passou a oferecer uma classe tarifária denominada Basic para rotas internacionais na América do Sul. Segundo a companhia, essa tarifa já existe em outros países onde a Latam opera, sendo uma opção mais econômica, ideal para passageiros que viajam com pouca bagagem.
Essa modalidade permite levar uma bolsa ou mochila de até 10 kg, que deve ser colocada sob o assento dianteiro, com dimensões máximas de 45 cm de altura, 35 cm de comprimento e 20 cm de largura.
Companhias aéreas estão desrespeitando as normas?
A Resolução nº 400 da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), de 2016, estabelece as Condições Gerais de Transporte Aéreo e define os direitos e deveres de passageiros e companhias aéreas no Brasil.
Desde sua publicação, o passageiro tem direito a transportar gratuitamente até 10 kg de bagagem de mão. Tradicionalmente, esse transporte incluía uma mala de mão que pudesse ser acomodada no compartimento superior da cabine.
No entanto, a própria Resolução 400 deixa a definição exata do que é considerado bagagem de mão a cargo do contrato de transporte oferecido pela companhia aérea. Essa brecha permite que as empresas imponham restrições quanto às dimensões e à quantidade de itens permitidos.
O artigo 14 da resolução determina que o transportador deve permitir uma franquia mínima de 10 kg de bagagem de mão por passageiro, conforme as dimensões e quantidades previstas no contrato de transporte.
Já o artigo 15, em seu parágrafo primeiro, autoriza que bagagens que não se enquadrem nas regras estabelecidas pela empresa possam ser recusadas ou submetidas a contrato de transporte de carga.
Portanto, entende-se que Gol, Latam e as outras companhias não estão desrespeitando a Resolução da Anac.
Em resumo, as brechas dessa resolução são:
- O contrato da companhia pode definir dimensões e a quantidade de peças;
- Bagagens fora das regras do transportador podem ser recusadas ou cobradas;
- A resolução não estabelece regras diferentes para voos domésticos e internacionais, o que permite às companhias criar tarifas que limitam ou excluem a bagagem de mão em voos internacionais.
Fechando as brechas
Para fechar as lacunas existentes na Resolução 400, a Câmara dos Deputados e o Senado se movimentaram para garantir que o passageiro tenha direito a levar uma mala de mão no compartimento superior da cabine.
O Senado foi a primeira Casa a aprovar um projeto de lei que assegura o direito do cliente de sempre embarcar com uma mala de mão na cabine. Segundo o relator, senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), a intenção é fechar brechas na Resolução 400 da Anac que permitem práticas abusivas.
A Câmara dos Deputados foi além e ampliou o texto, garantindo não apenas a mala de mão de até 10 kg, mas também o despacho gratuito de uma mala de até 23 kg em voos domésticos e internacionais.
Vale lembrar que o passageiro brasileiro perdeu, há alguns anos, o direito de despachar gratuitamente uma mala de até 23 kg, sob o argumento de que as tarifas ficariam mais baratas. Além disso, hoje muitos passageiros precisam até pagar para marcar assentos. Algo esdrúxulo, mas infelizmente uma prática adotada em grande parte do mundo.
O relator na Câmara, deputado Alex Manente (Cidadania-SP), argumenta que a perda do direito à bagagem gratuita não resultou em passagens mais baratas. Concordo parcialmente com essa visão.
O outro lado
Embora as companhias aéreas realmente explorem os consumidores, há outros fatores que encarecem as passagens, como a cotação do dólar. Portanto, não considero adequado retomar a obrigatoriedade do despacho gratuito de bagagens de porão, especialmente de até 23 kg. A reação das entidades do setor aéreo foi imediata.
A Associação de Transporte Aéreo Internacional (Iata) e a Associação Latino-Americana e do Caribe de Transporte Aéreo (Alta) classificaram a aprovação do Projeto de Lei nº 5.041/2025 como um retrocesso.
Segundo a Alta, a medida imporia restrições rígidas de preço e operação a voos domésticos e internacionais com origem ou destino no Brasil, comprometendo a eficiência e a flexibilidade essenciais para um sistema de transporte aéreo sustentável.
O texto também poderia violar acordos internacionais de liberdade tarifária, colocando o país em situação de não conformidade. Em carta aberta à Câmara dos Deputados, o CEO da JetSmart, Estuardo Ortiz, expressou profunda preocupação com o avanço do projeto.
Segundo ele, embora motivada pela legítima intenção de beneficiar o consumidor, a iniciativa produziria efeitos contrários, impactando diretamente os passageiros, a concorrência, a conectividade e o desenvolvimento da aviação brasileira.
A JetSmart afirmou ainda que, com base em seus dados operacionais, mais de 60% dos passageiros optam por viajar sem bagagem adicional, priorizando preços mais baixos e viagens curtas.
Incluir o custo da bagagem em todas as tarifas transfere uma despesa desnecessária à maioria dos viajantes, gerando o efeito oposto: aumento de preços, menor acesso e perda de equidade no sistema tarifário.
Mercado brasileiro desafia ultra-low cost
Mesmo que a proposta de restabelecer a gratuidade para o despacho de bagagens de até 23 kg seja descartada, permanecendo apenas a garantia da mala de mão de até 10 kg, resta saber como as empresas ultra-low cost se adaptarão ao mercado brasileiro.
Diante do crescimento que essas companhias vêm apresentando no país e da importância estratégica do Brasil para sua expansão, é possível que ajustem suas políticas e ofereçam condições mais favoráveis aos consumidores locais. O mercado brasileiro é grande demais para que essas empresas o ignorem.
Hoje, mais grave do que a restrição à bagagem é a falta de concorrência e, consequentemente, a escassez de voos, o que prejudica diretamente o passageiro.
As companhias não estão desrespeitando a lei. No entanto, é legítimo que a Resolução 400 seja atualizada para assegurar, no mínimo, o direito ao transporte gratuito de um item pessoal, como bolsa ou mochila, e de uma mala de mão. Que as empresas incluam esse custo no preço final. No Brasil, é assim que deve ser.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.