Arquivamento de investigação sobre violência doméstica pode ser contestado na Justiça, decide STJ

A relatora do caso considerou que, em hipóteses excepcionais, a corte admite o uso do mandado de segurança para impugnar o arquivamento

Legenda: O caso analisado trata de uma suposta vítima que relatou a policiais, em fevereiro de 2022, ter sido agredida verbal e fisicamente pelo namorado na residência dele
Foto: Shutterstock

A decisão que homologa o arquivamento de um inquérito policial sobre violência doméstica e familiar contra a mulher pode ser contestada em casos excepcionais. O entendimento é da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que cassou a validação ao julgar um recurso em mandado de segurança.

O caso analisado trata de uma suposta vítima que relatou a policiais, em fevereiro de 2022, ter sido agredida verbal e fisicamente pelo namorado na residência dele. Ao ser submetida a um exame pericial, foram constatadas múltiplas lesões no corpo.

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Entretanto, a Promotoria de Justiça de São Paulo considerou as provas frágeis, pedindo o encerramento do inquérito sem determinar outras diligências para apurar a possível situação de violência contra a mulher. O pedido foi homologado pelo juízo de primeiro grau.

Agora, com a cassação da homologação, o colegiado do STJ determinou que os autos sejam enviados ao procurador-geral de Justiça do estado para melhor análise quanto ao possível exercício da ação penal ou à realização de novas diligências investigativas.

"Não houve a devida diligência"

A mulher que denunciou as agressões havia pedido a reconsideração do arquivamento à promotora e ao juízo. Contudo, as manifestações foram contrárias ao interesse da suposta vítima.

Ela então requereu a revisão do arquivamento pelo procurador-geral, o que foi igualmente indeferido pelo juízo de primeiro grau. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) negou a reanálise do caso.

O encerramento prematuro das investigações, aliado às manifestações processuais inconsistentes nas instâncias ordinárias, denotam que não houve a devida diligência na apuração de possíveis violações de direitos humanos praticadas contra a recorrente, em ofensa ao seu direito líquido e certo à proteção judicial"
Minsitra Laurita Vaz
Relatora do caso no STJ
A ministra embasou seu entendimento nos artigos 1º e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos e o artigo 7º, alínea "b", da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

Laurita Vaz explicou ainda que a Constituição Federal atribuiu ao Ministério Público, de forma privativa, o exercício da ação penal pública (artigo 129, inciso I).

Por isso mesmo, destacou a ministra, o artigo 28 do Código de Processo Penal estabeleceu a regra de que, após a instauração do inquérito, o arquivamento da investigação sem a propositura da ação penal exige prévia análise judicial, podendo o magistrado discordar do pedido de arquivamento e determinar melhor análise da questão pelo chefe do Ministério Público.

A relatora lembrou que esse dispositivo recebeu nova redação com a Lei 13.964/2019, mas a sua eficácia foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.305. Contudo, ao tempo do caso em discussão, o procedimento de arquivamento do inquérito exigia a manifestação judicial.

Hipóteses excepcionais

Embora a jurisprudência majoritária do STJ considere irrecorrível a decisão do juízo singular que determina o arquivamento do inquérito a pedido do MP, a ministra observou que, em hipóteses excepcionais, nas quais há flagrante violação a direito líquido e certo da vítima, a corte admite o uso do mandado de segurança para impugnar o arquivamento.

"A admissão do mandado de segurança na espécie encontra fundamento no dever de assegurar às vítimas de possíveis violações de direitos humanos, como ocorre nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, o direito de participação em todas as fases da persecução criminal, inclusive na etapa investigativa, conforme determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos em condenação proferida contra o Estado brasileiro", esclareceu a ministra.

Palavra da vítima

Segundo a relatora, nas situações de violência doméstica e familiar contra a mulher, a ação penal é um instrumento para garantir a observância dos direitos humanos e cumprir as obrigações internacionais do Estado brasileiro. "Portanto, deve ser compreendida, à luz do direito internacional dos direitos humanos, como parte integrante do dever estatal de garantir o livre e pleno exercício dos direitos humanos a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição e de assegurar a existência de mecanismos judiciais eficazes para proteção contra atos que os violem", ressaltou.

Para Laurita Vaz, na hipótese em análise, a palavra segura da vítima, aliada à existência de laudo pericial constatando múltiplas lesões significativas e atestando que houve ofensa à sua integridade corporal, formam um conjunto de provas que não pode ser desprezado.

"Ainda que não se formasse a convicção pelo exercício imediato da ação penal, seria necessária, no mínimo, a busca por testemunhas ou outras informações, a fim de melhor definir se existia ou não situação de violência contra a mulher", ponderou.

Na sua avaliação, a decisão que homologou o arquivamento foi proferida sem a verificação da devida diligência na investigação e com inobservância de aspectos básicos do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, sobretudo quanto à valoração da palavra da vítima, "que assume inquestionável importância quando se discute violência contra a mulher, especialmente quando há outros indícios que a amparem".

Com informações da Secretaria de Comunicação Social do STJ.