Bundalismo virou cultura. E o Enzo que o diga
Diferenças geracionais estimulam debate sobre as prioridades de cada indivíduo no mundo atual
Enzo, aos 15 anos, é um gênio moderno. Não daqueles que decoram datas de guerra ou conhecem as regras gramaticais, longe disso. Ele é um garoto que já entendeu o jogo da vida antes mesmo de chegar à idade adulta. Para ele, o sucesso não está nos livros nem nas conversas longas. Aliás, ele nem lê. O único “paradidático” que lembra é o código promocional da plataforma de apostas que o fez ganhar uns trocados na semana passada.
Sim, Enzo é um estrategista. Influenciador digital na sua bolha de amigos, adora “pagar de próspero”, distribuindo lanches na escola e falando com um brilho nos olhos sobre como vai “bombar” no Instagram. Seu sonho? Não é um diploma ou um legado, mas a fama, botox e, claro, muito rebolado – literalmente e figurativamente. Enzo não vê problema nisso. Ele é fruto de uma cultura que o fez acreditar que para ter sucesso, basta aparecer. E, de preferência, aparecer com filtro.
Do outro lado da mesa, senta-se Raimundo, seu pai, o tipo de cara que prefere Garrincha a Anitta e que acha que ser bom vendedor de carros usados não é só sobre bater metas, mas sobre ser decente com as pessoas. Sim, ele é “o vendedor do mês”, mas não por se achar gostosão, e, sim, por entender que manter boas relações é fundamental.
Raimundo, que devora biografias e livros de curiosidades, nunca entendeu muito bem o que o filho quer dizer com “se eu rebolo no Instagram, os seguidores crescem”. Ele até tem Instagram, mas usa apenas para ver memes e vídeos de gatinhos jogando bola. Para ele, o tal do sucesso é uma combinação de trabalho duro, honestidade e foco no ser, e não no ter.
Certa manhã, durante um café, Enzo, com a soberba de quem se acha a nova sensação do TikTok, comentou:
– Pai, já pensou em deixar de ser vendedor e virar influenciador? Aposto que você ia ganhar mais grana mostrando carros no Instagram. É só botar uma música do MC Cabelinho e fazer umas dancinhas. Vai dar bom.
Raimundo, que estava imerso na leitura de um artigo sobre a biografia de Cartola, riu, mas não perdeu a calma:
– Filho, acho que você está confundindo as coisas. Ser influente é mais que ter curtidas e patrocinador de apostas. Eu gosto de saber por que as pessoas fazem o que fazem, e isso, meu caro, não dá pra entender só rebolando.
A conversa seguiu, mas o choque de culturas estava claro. De um lado, Raimundo, moldado pela cultura de manter, formada por rock clássico, livros, jornais e histórias de ídolos que fizeram por onde. Do outro, Enzo, produto da cultura do Bundalismo, onde o que importa é ter, e o "ser" pode esperar. E, nessa cultura, os valores se liquefazem tão rápido quanto as fotos que desaparecem em 24 horas no Instagram.
O "Bundalismo", nome que pode rotular essa nova visão de mundo, é uma espécie de culto à superficialidade, onde o "ter" é mais importante do que o "ser". Enzo acredita piamente que os estudos são apenas um atraso em sua carreira de sucesso no TikTok. Para ele, sucesso é sinônimo de followers, fama e dinheiro fácil. E, convenhamos, quem precisa ler um livro quando pode ver um resumo no Instagram em 30 segundos? Ele, como muitos outros de sua geração, foi devorado pela indústria cultural que transformou tudo em mercadoria: corpo, rosto, opiniões. Para Enzo, se tem likes, logo, vale a pena. Se viraliza, então é sucesso. E, se o MC que está bombando no momento tá falando, então tá certo.
Raimundo, por outro lado, é um sobrevivente de uma era na qual informação era consumida com calma, em que se lia jornal no papel, discutia-se futebol em mesas de bar, e os herois não eram ricos, mas pessoas que conquistaram o respeito por quem eram. A indústria cultural de sua época formou uma visão de mundo diferente, uma cultura do manter, de quem aprecia o conhecimento que fica, o relacionamento que é construído. E, para ele, sucesso não é rebolar, mas ser íntegro, seja vendendo carros ou vivendo a vida.
O fenômeno que tomou conta da mente de Enzo – e de muitos outros jovens – é o que Guy Debord chamou de "sociedade do espetáculo". Para Debord, tudo se resume à aparência. Vivemos em uma época na qual a imagem substitui a realidade. Zygmunt Bauman, por sua vez, explicou isso como a "liquidez da modernidade". Para ele, as relações e valores se tornaram tão voláteis quanto os stories do Instagram: rápidos, descartáveis, superficiais. Ninguém quer mais saber de profundidade. E Enzo é o reflexo disso, vivendo num mundo onde o rebolar é mais importante do que pensar.
Psicólogos como Jean Twenge, que estudam a "geração da selfie", apontam que essa cultura superficial tem impactos profundos na autoestima e na visão de mundo dos jovens. O "Bundalismo" cria a ilusão de que fama e aparência são suficientes para se alcançar o sucesso, mas falha miseravelmente em ensinar resiliência, trabalho duro ou a importância de ser uma pessoa plena.
O impacto para a sociedade? Um exército de Enzos prontos para conquistar o mundo com filtros, mas sem a menor ideia de como lidar com as complexidades da vida real. Assim ele entrega a sua jornada a uma plataforma, que pode mudar da noite pro dia as diretrizes e ele terá que se virar para se manter sustentável, dentro de algo que ele não controla.
Enquanto Enzo sonha com sua próxima postagem viral, Raimundo volta ao seu livro, pensando no quanto seu filho ainda tem a aprender. Afinal, a verdadeira cultura – a que forma o ser humano de dentro para fora – ainda resiste, embora esteja cada vez mais soterrada por bundas rebolando nas redes sociais.
O que resta para Enzo?
Para que Enzo consiga compreender o mundo real ao seu redor, ele precisaria, como sugere a psicologia fenomenológica, descobrir um propósito que vá além das gratificações imediatas e vazias. Viktor Frankl, um dos maiores expoentes dessa linha de pensamento, defendeu que a busca pelo propósito é a verdadeira força motriz do ser humano. Na ausência de um sentido claro na vida, o indivíduo mergulha em uma espécie de vazio existencial, em que a busca por prazeres efêmeros – como os likes e a aprovação nas redes sociais – acaba apenas mascarando uma profunda falta de realização. O problema é que essa gratificação instantânea, reforçada pela “dopamina barata” que Enzo recebe ao postar uma foto ou ganhar um seguidor, é como um fogo de palha: dura apenas alguns segundos, mas não gera memórias ou sentimentos positivos duradouros.
A psicologia fenomenológica nos alerta que o ser humano precisa de experiências autênticas para criar uma narrativa coerente de si mesmo, algo que Martin Heidegger chamava de “ser-no-mundo”. Para Heidegger, viver autenticamente significa confrontar a realidade, com todas as suas nuances e dificuldades, e construir um caminho que tenha propósito. Sem isso, o indivíduo acaba perdido num ciclo sem fim de estímulos fugazes, incapaz de perceber o que realmente importa.
A busca incessante por dopamina fake, como nos likes e nos posts que Enzo tanto valoriza, não apenas afeta seu bem-estar emocional, como também compromete sua capacidade de formar memórias significativas e laços profundos. Daniel Kahneman, psicólogo ganhador do Nobel, explica que a satisfação verdadeira vem de experiências que deixem marcas duradouras, e não de breves explosões de prazer que evaporam tão rápido quanto surgem. Se Enzo continuar nesse ciclo de busca por prazeres imediatos, ele estará fadado a viver num estado constante de insatisfação, sempre em busca do próximo pico de dopamina, mas sem encontrar um propósito maior que lhe dê uma direção na vida.
Se Enzo quiser escapar dessa armadilha, ele terá que se desconectar da cultura do Bundalismo e começar a buscar experiências que o façam crescer como ser humano. Encontrar um propósito exige mais do que likes; exige introspecção, empatia, e a capacidade de enxergar o mundo com profundidade. Sem isso, ele corre o risco de passar a vida correndo atrás de uma felicidade que nunca chega.
Como nos ensina Frankl, o sentido da vida não está em evitar a dor ou perseguir o prazer imediato, mas em enfrentar a realidade e encontrar um propósito que dê verdadeira satisfação ao espírito. Talvez, se um dia ele for acompanhar seu pai vendendo carros, ele entenda o propósito de quem cuidou da família fazendo algo que se sustenta e permeia a vida do pai em forma de apoio, até nos piores momentos. Esse apoio dos relacionamentos não construídos o levará à solidão, pois o amigo TikTok não vai nem saber quem é Enzo.