A seletiva e mórbida sociedade do espetáculo

Foto: Imagem: SVM

Desde a mistura do Brasil com o Egito, nunca se viu uma sociedade dançar tão bonito. As dancinhas do TikTok são apenas um microcosmo de um mercado de vendas de conteúdos feitos por humanos que buscam um estrelato ou apenas mais uma fonte de receita. Ocorre que, em busca de tais objetivos, a entrega pode ser bastante danosa ao próximo. Se você acredita em Jesus, o amor ao próximo não necessariamente se aplica nesse mundo de cifras conquistadas por cliques.

Fica aí o primeiro momento de reflexão: você se preocupa com o próximo com relação ao que você entrega para a sociedade?

A sociedade contemporânea está mergulhada em um fenômeno conhecido como "sociedade do espetáculo". Esse termo, cunhado pelo filósofo francês Guy Debord, descreve uma cultura em que a busca pela fama e notoriedade se tornou uma obsessão desenfreada. Nas mídias sociais e na indústria do entretenimento, a necessidade de ser visto e reconhecido é cada vez mais prevalente, levando algumas pessoas e grupos a extremos perigosos.

No mundo das mídias, especialmente nas redes sociais, muitos indivíduos se sentem compelidos a realizar ações chocantes e sem sentido apenas para obter likes, compartilhamentos e seguidores. Um exemplo corriqueiro e bastante questionável são os "influencers de pegadinhas". Alguns, em busca de likes, colocam pessoas em situações de alto risco, onde o perigo de matar ou morrer não ganha o devido peso na concepção criativa. Um exemplo famoso foi o caso do youtuber americano, Tomothy Wilks, assassinado em 2021 quando usou facas para realizar uma pegadinha contra homens que, armados, atiraram em legítima defesa.
 
Um outro grande exemplo gritante de violência em troca de cliques é o caso dos chamados "desafios da internet", nos quais indivíduos se envolvem em atividades perigosas ou até mesmo ilegais para obter atenção. O "desafio da rasteira", por exemplo, ganhou notoriedade nas redes sociais e consistia em três pessoas posicionadas lado a lado enquanto a do meio era derrubada por uma rasteira. Infelizmente, esse desafio levou a sérias lesões e até mesmo mortes.

Exemplos não faltam nessa categoria mórbida de atração de likes. Baleia Azul, desafio da canela, surf em cima do carro, Jogo do Fogo, Kylie Lip Challenge... Não vou descrever o que cada um faz, pois o objetivo não é ensinar a praticar atos de autoflagelo, mas, sim, exemplificar que não são práticas isoladas.
 
Além dos desafios, alguns indivíduos chegam ao ponto de cometer crimes em busca de fama instantânea. Grupos conhecidos como "gangues virtuais" têm se envolvido em atividades criminosas, como assaltos e agressões, com o objetivo de registrar e compartilhar essas ações nas mídias sociais. Estes grupos enxergam a violência como uma forma de alcançar notoriedade e ganhar seguidores.
 
Por outro lado, essa obsessão pela fama também alimenta uma indústria lucrativa. Empresas e influenciadores digitais capitalizam o desejo das pessoas de serem vistas e admiradas, transformando essa busca em uma máquina de geração de receitas. A publicidade direcionada, as parcerias de marca e as colaborações com empresas são apenas algumas das maneiras pelas quais a busca pela fama se tornou um negócio lucrativo.
 

A seletividade coerente com a baixa receita 

O Paquistão viveu uma tragédia em 2022 que deixou um terço do país debaixo d’água. Foram 33 milhões de pessoas impactadas com suas casas completamente devastadas. Foram mais de mil mortos, em sua maioria crianças. Não faltaram motivos para tratarmos como a maior tragédia natural de 2022. Alguém viu nas redes sociais uma onda de pessoas rezando pelo Paquistão? Não vejo um clamor por ajuda para um país tão sofrido. 

O que faz uma tragédia ser sensibilizada ou não?O fato do país não ser conhecido com detalhes pelo mundo ocidental? Será que esse fator não gera engajamento para aqueles que poderiam estar unidos, apoiando em massa o pobre país asiático? Ou as pessoas não têm coração para tragédias contra paquistaneses?

Parece que a fama de uma tragédia tem tido mais força do que o real sentimento de altruísmo no mundo moderno. Defender situações mais midiáticas demonstra ser algo mais atrativo. Parece que o retorno em cliques alimenta o tamanho do amor ao próximo nessa mentalidade digital.

 
Estamos em 2023 e o mundo está de olho no caso dos 4 homens que decidiram vasculhar um navio que afundou há mais de 100 anos, enfurnados em uma lata em forma de minissubmarino, controlado por joysticks de vídeo game. E, a cada minuto, os maiores jornais do mundo divulgam notícias sobre a alarmante situação na qual eles se encontram.
 
Vamos inverter. Digamos que uma inundação tenha colocado 33 milhões de franceses em situação de risco e 4 paquistaneses pobres estivessem dentro de um minissubmarino buscando imagens do Titanic. Onde estariam os holofotes? Influencers de todo o mundo estariam rezando pela França e muitos estariam caçoando dos pobres paquistaneses que decidiram entrar na latinha que afunda para a morte.
 
Na busca por cliques, o mercado consumidor de quem sofre é mais relevante do que o patamar da tragédia.

Falem bem ou falem mal, o importante é a receita 

A indústria global de mídia e entretenimento alcançou uma receita de aproximadamente 2,4 trilhões de dólares em 2021. Deste montante, a receita proveniente da publicidade digital representou cerca de 44%, ou seja, em torno de 1,06 trilhão de dólares.
 
Em relação às redes sociais, gigantes como o Facebook e o Instagram têm desempenhado um papel significativo na geração de receitas. Em 2020, por exemplo, o Facebook reportou uma receita total de 86 bilhões de dólares, sendo a publicidade responsável por cerca de 98,5% deste valor. Esses números mostram a relevância das mídias sociais como plataformas de publicidade e como ferramentas para alcançar a fama e a visibilidade desejadas.
 
Além disso, é importante mencionar que influenciadores digitais se tornaram peças-chave nesse mercado. De acordo com estimativas, em 2020, a indústria de influenciadores foi avaliada em mais de 13,8 bilhões de dólares globalmente. Isso inclui não apenas o valor das colaborações e parcerias com marcas, mas também os produtos e serviços lançados por esses influenciadores, que muitas vezes se beneficiam de suas grandes bases de seguidores. Esses números destacam a dimensão financeira que envolve a busca pela fama nas mídias.

Lucro meu. Problema seu 

 Portanto, é fundamental que a sociedade reflita sobre o equilíbrio entre a busca por reconhecimento e a responsabilidade individual.

Enquanto o mercado de entretenimento e mídia continuará gerando receitas substanciais, é necessário promover uma consciência coletiva que priorize a autenticidade, a empatia e o impacto positivo, em detrimento de ações irresponsáveis ou até mesmo criminosas em busca de fama.

 
As plataformas digitais, como TikTok, Instagram, Google, Facebook e WhatsApp, desempenham um papel significativo na promoção da sociedade do espetáculo e no aumento de sua receita. Essas plataformas operam com base em modelos de negócio que dependem do engajamento do usuário, o que significa que, quanto mais tempo as pessoas passarem nessas plataformas e interagirem com o conteúdo, maior será o potencial de geração de receita.
 
Uma das maneiras pelas quais essas plataformas incentivam o espetáculo é por meio de algoritmos de recomendação e personalização de conteúdo. Estes algoritmos são projetados para identificar os interesses e preferências dos usuários e, assim, apresentar conteúdo que eles provavelmente irão gostar e consumir por mais tempo. Isso acarreta uma maior exposição a conteúdos sensacionalistas, chocantes ou que promovam o culto à fama.
 
Além disso, essas plataformas muitas vezes oferecem recursos e ferramentas que incentivam os usuários a se destacarem e buscarem a fama. Por exemplo, o TikTok possui desafios virais onde os usuários são encorajados a gravarem vídeos criativos e cativantes para atrair visualizações e seguidores. O Instagram tem recursos como o "Explore" e o "Reels", que promovem a descoberta de conteúdo popular e incentivam os usuários a criarem vídeos e fotos atraentes para conquistar mais seguidores.
 
Elas também oferecem recursos de monetização, como anúncios direcionados e parcerias com influenciadores, permitindo que os usuários transformem sua fama virtual em receita real. Influenciadores digitais, por exemplo, são capazes de ganhar dinheiro por meio de colaborações com marcas e promoção de produtos em suas postagens.
 
Além disso, empresas como o Facebook, que é proprietário do Instagram e do WhatsApp, investem em estratégias de publicidade altamente eficazes, permitindo que anunciantes alcancem um público altamente segmentado com base em dados pessoais e comportamentais. As estratégias publicitárias aumentam a receita das plataformas e incentivam os anunciantes a investirem mais para obter visibilidade e reconhecimento.

A união de algoritmos em busca de engajamentos, pessoas querendo fama, ausência de amor ao próximo e big techs construindo ferramentas de direcionamento de conteúdos têm entregado ao mundo uma verdade fake. Estranho, né? 

A verdade fake é a exata incongruência do “cidadão creator” sem coração, que prega a alegria, o humor e a diversão como se buscasse o bem nas suas publicações, mas produz conteúdos destrutivos, emocional ou fisicamente, ou que humilham um outro ser como forma de conquistar fama, fazendo com que sua "brincadeira de verdade" seja uma entrega fake de troca de vida alheia por cliques próprios.

Falamos aqui de humanos, mas você pode estar fazendo isso para a sua marca, achando sensacionais os cliques conquistados, sem avaliar que a sua reputação está apenas aplicando para seu negócio o desafio suicida da Baleia Azul.



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