Quando a dor não tem ritual: o silêncio em torno das perdas gestacionais

O amor não espera um ultrassom nítido para nascer e o luto também não espera o parto para começar

Escrito por
Eliziane Correia producaodiario@svm.com.br
Legenda: Em 2024, o país registrou 22.919 mortes fetais e quase 20.000 óbitos neonatais
Foto: Divulgação/HGCC

Foi no banheiro, sozinha, que ela percebeu: seu corpo já não abrigava mais aquela vida em formação. Não houve aviso. Nem tempo para se preparar. O sangue veio como um recado cruel de que algo havia terminado antes mesmo de começar. Não teve velório. Nem abraço. Só silêncio.

Relatos como esse ecoam, muitas vezes, entre sussurros nas redes sociais, em rodas de conversa discretas, ou sob o manto do anonimato. Porque, quando uma gestação termina antes de nascer, a dor da perda muitas vezes não encontra espaço para existir.

O aborto espontâneo é uma experiência comum e profundamente solitária. Estima-se que até 20% das gestações reconhecidas terminem assim, especialmente nas primeiras 12 semanas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2024, o País registrou 22.919 mortes fetais e quase 20 mil óbitos neonatais. Ainda assim, essa vivência permanece envolta em silêncio, vergonha e, o mais doloroso: na negação do direito ao luto.

A dor que se minimiza

“Foi melhor assim”.
“Você ainda pode tentar de novo”.
“Nem era um bebê ainda”.

Frases como essas, ditas muitas vezes com intenção de consolar, soam como tapas suaves que silenciam o sofrimento. A mulher que perde uma gestação, seja nas primeiras semanas ou mais adiante, frequentemente não é autorizada a sofrer. Porque “não deu tempo de amar”. Porque “ainda era cedo”. Porque “acontece com todo mundo”.

Mas o mundo se esquece de que o amor não espera um ultrassom nítido para nascer. E que o luto também não espera o parto para começar.

Perda gestacional
Legenda: O luto de Masangela Furtado iniciou aos cinco meses de gestação de Heitor
Foto: Arquivo pessoal

Aos cinco meses de gestação, Masangela Furtado, confeiteira de Itapajé (CE), recebeu a notícia de que seu bebê não sobreviveria. Mesmo assim, decidiu seguir com a gravidez, agarrada à esperança de um milagre e fortalecida pelo apoio da equipe do Hospital Geral Dr. César Cals, referência no acolhimento à perda gestacional no Ceará.

“Foi muito difícil na época, um baque muito grande. Fomos descobrindo várias malformações, incompatíveis com a vida. Ele poderia morrer na barriga ou nascer e sobreviver por um minuto, uma hora… não tinha como saber”, lembra.

Culpa, vergonha, solidão

Muitas mulheres, ao viverem uma perda gestacional, sentem que falharam. O corpo, antes espaço de criação, passa a ser visto como um território de falência. A culpa é um fantasma insistente, mesmo quando a ciência afirma que a maioria das perdas não tem causa identificável, tampouco poderia ser evitada.

A dor se mistura à vergonha e ao isolamento. Ingredientes perigosos para o adoecimento emocional.

Giselle Araruna, coordenadora do serviço de enfermagem obstétrica do Hospital Geral Dr. César Cals, vive de perto a rotina de dor e reconstrução dessas mulheres.

“A gente tem uma equipe multiprofissional - com serviço social, psicologia, medicina e enfermagem - que atua de forma integrada para garantir o cuidado. Algumas gestantes chegam sem saber que perderam o bebê. Outras já vêm com o diagnóstico de risco. Em todos os casos, o acolhimento é essencial”, explica.

A ansiedade, o trauma e a depressão são respostas naturais. Masangela lembra como buscava não sentir: “Eu acordava às 5 da manhã e ia até meia-noite. Não queria ter tempo de pensar. Eu contava a história toda, mas era como se fosse com outra pessoa. Eu anulava a gravidez, mesmo sentindo todos os sintomas”, conta. 

Eleonora Pereira, que atua na coordenação do setor de psicologia do César Cals, explica os sentimentos mais recorrentes entre as mulheres enlutadas: “A primeira reação é uma tristeza profunda. Muitas apresentam o que chamamos de depressão reativa, com muito choro, isolamento e dor. A culpa também aparece com frequência: ‘Foi o meu corpo que falhou? Eu fiz algo errado?’ E junto com isso, raiva, impaciência, irritação. É o corpo tentando processar uma perda sem forma”, analisa.

Luto sem nome, sem corpo, sem licença

A mulher volta ao trabalho. À rotina. À vida. Como se nada tivesse acontecido. Como se não tivesse carregado dentro de si um pedaço de futuro. É um luto que não cabe no calendário. Não há flores. Nem despedidas. E, muitas vezes, nem licença.

“Na literatura, chamamos de luto não reconhecido. Aquele que não é socialmente validado. Por isso, quem sofre acaba não recebendo o apoio necessário”, explica Eleonora.

Esse cenário começa a mudar. Em maio de 2025, foi sancionada a Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental (Lei nº 15.139/25), que estabelece diretrizes para o acolhimento e cuidado com mulheres e famílias que enfrentam a perda de um bebê - seja por aborto espontâneo, óbito fetal (a partir da 20ª semana) ou neonatal (nos primeiros 28 dias após o parto). A nova legislação garante, entre outras medidas:

  • atendimento psicológico especializado;
  • realização de exames para investigar as causas da perda;
  • direito a acompanhante no parto de natimorto;
  • espaços separados nos hospitais, longe de outras gestantes e recém-nascidos;
  • apoio nos trâmites legais.

“Aqui, no César Cals, a gente já seguia esse cuidado antes mesmo da lei. As pacientes ficam em alas reservadas, com privacidade e silêncio. A equipe atua de forma integrada para garantir alta rápida, com o menor trauma possível”, explica Giselle Araruna, coordenadora do serviço de enfermagem obstétrica do hospital.

É preciso romper o silêncio

Falar sobre perda gestacional não é vitimismo. É humanização. É dar nome a uma dor que muitas carregam caladas. É permitir que a mulher seja protagonista da sua experiência de perda e de luto.

“O primeiro passo é validar essa dor. Permitir que ela chore, fale, ou apenas fique em silêncio. Se desejar, deve haver a possibilidade de uma despedida simbólica. A nova lei é um avanço importante: ela reconhece que essa dor existe, é legítima e precisa ser acolhida”, diz Eleonora.

A psicóloga ressalta ainda a importância de elementos que materializem a existência daquele bebê. “Quando o bebê parte tão precocemente, às vezes a mulher se pergunta: ‘Será que isso aconteceu mesmo?’ Ter algo que confirme sua existência - uma foto, um exame, um nome - ajuda na elaboração do luto”, pondera.

Nas últimas semanas de gestação, Masangela recebeu a notícia de que o bebê não apresentava mais batimentos cardíacos. Foi preciso induzir o parto. Uma despedida abrupta de uma história que não teve tempo de acontecer.

“Porque a gente é mãe desde o momento em que descobre a gravidez, não é depois que o bebê nasce. Não importa se foram semanas ou meses - foi um filho que eu perdi, uma história que não vivi. A vida segue, mas uma mãe que perde um filho nunca esquece”, comenta.

Todo luto merece respeito

Perder um filho, mesmo que ainda pequeno demais para caber num ultrassom ou num nome definido, é perder um projeto de vida. Um espaço de amor que já existia. Não importa se ele coube nos braços, ele coube no coração.

Quase um ano após se despedir de Heitor, Masangela reencontrou o fôlego da vida com a chegada de Olívia - sua bebê arco-íris, como são chamadas as crianças que nascem após a perda de um filho, seja por aborto espontâneo ou morte neonatal.

Olívia não veio para ocupar o lugar de quem partiu, mas para mostrar que, mesmo em meio à dor, ainda é possível renascer. Ela é a continuação do amor, a esperança que se refaz em forma de vida, o colorido suave depois da tempestade.

masangela com bebe arco-iris
Legenda: Cerca de um ano após se despedir de Heitor, Masangela reencontrou o fôlego da vida com a chegada de Olívia, sua bebê arco-íris
Foto: Arquivo pessoal

“Quando me perguntam se é meu primeiro filho, eu digo: é o primeiro que tive a oportunidade de cuidar. Meu primogênito sempre será o Heitor. Ele faz parte da minha história, da do meu marido, da nossa família. De alguma forma, ele passou por aqui”, lembra.

O sopro de vida veio no tempo certo. Não para apagar a dor, mas para ensiná-la que existe tempo para tudo.

Eu queria o meu filho, mesmo com todos os problemas que ele poderia ter. Mas acredito que ele me preparou para ser ainda mais entregue à minha filha. Depois eu me arrumo, depois eu volto a trabalhar. Agora, o importante é ela. Porque foi muito difícil perder meu filho. Hoje, o que importa é a saúde da minha filha
Masangela Furtado
confeiteira

Nenhuma mulher deveria chorar sozinha por um filho que não chegou a nascer.

Toda dor merece nome. Toda dor merece escuta. Toda dor merece cuidado.