Memórias afetivas de São João: a herança que dança entre gerações
A festa junina é também um espaço de encontro com nossas raízes culturais, uma celebração coletiva que fala de pertencimento

O colorido das bandeirinhas, o ritmo contagiante da quadrilha junina e o aroma das comidas típicas sempre me transportam para um tempo cheio de alegria, música e tradição. Tenho lembranças vivas das festas de São João da minha infância. Minha mãe costurava meus vestidos com todo carinho e caprichava nos penteados para que eu vivesse, com beleza e intensidade, essa celebração tão viva e comunitária.
Tudo começou nas festas da escola, mas logo fui me aventurar na quadrilha infantil Sementes do Girassol, em Caucaia. Fui brincante, noiva, princesa e até participei de festivais. Minha mãe acompanhava tudo com os olhos brilhando de orgulho. Era mais que apoio: uma partilha de identidade, um rito afetivo passado de mãe para filha. Um elo de pertencimento.
Cultura viva, identidade coletiva
O psicólogo e pesquisador da cultura popular José Clerton de Oliveira Martins explica que “as festas populares expressam uma identidade cultural integrada à cultura local e coletiva e fazem referência a uma construção histórica, social, oralidade, apropriações indígenas, negras, europeias e cristãs, sobretudo”. Essa diversidade de influências está presente em cada detalhe do São João, desde os trajes até os sabores, ritmos e gestos.
Hoje, entendo aquele sentimento quando vejo minha filha, Beatrice, vestida de matutinha, rodopiando animada na quadrilha da escola. O São João pulsa nela, como um legado vivo que se reinventa a cada geração. É como se a festa dançasse através de nós, mães e filhas, em ciclos que atravessam o tempo.
Essas tradições moldam quem somos. William, meu companheiro e pai da Beatrice, também foi quadrilheiro. Nosso primeiro encontro teve como cenário um ensaio junino. Ele usou como desculpa o desejo de assistir à quadrilha que eu integrava, tudo para me ver de perto. Nossos caminhos se cruzaram ao som do triângulo, da zabumba e da sanfona.
A festa que transforma
Com o tempo, deixei de dançar para entoar os cantos da quadrilha. Foram dois anos no regional da Girassol, versão adulta. Em cada festival, posso jurar que senti a magia do São João tomando conta, era como se cada acorde e cada passo ressoassem algo profundo dentro de mim.
O São João é muito mais do que festa. Ele é expressão viva da cultura popular nordestina, um campo de memória, arte, resistência e identidade. É através da quadrilha junina que milhares de pessoas se conectam com suas raízes, constroem comunidade, aprendem e transmitem saberes.
O psicólogo e brincante Vicente Melo é uma dessas vozes que vivem o São João como prática diária de cultura e afeto. Ele representa quem respira essa tradição o ano inteiro.
“Tem algo que é mais forte, sabe? Essa herança da cultura nordestina me atravessa de um jeito muito profundo. São memórias que dançam com a gente. Não é só pisar na quadra e sorrir. O São João exige pesquisa, escrita, produção, gestão e criação coletiva. É um processo de aprendizagem cultural e humana que se renova a cada ano.”
Mais do que festa, o São João é um território de pertencimento. Uma celebração coletiva que mantém acesa a chama das tradições, transformando cada detalhe - do figurino aos sabores, das músicas às danças - em símbolos de identidade. O pesquisador Clerton também nos ajuda a enxergar essa riqueza.
“A quadrilha foi adaptada para Lisboa, trazida para o Brasil, e hoje é uma quadrilha brasileira que não preserva o nome dos passos franceses, mas é a expressão mais forte do nosso povo”, afirma.
Ele ressalta também como a festa se transforma ao longo do tempo: “A cultura junina incorpora novos elementos culinários, como vatapá de frango, mostrando a transformação cultural. A festa está ligada a alimentos tradicionais e à celebração da abundância”. Não é só celebração: é memória viva.
Afeto, memória e pertencimento
A vivência dessas festas na infância também influencia o desenvolvimento das crianças. “Tudo o que se aprende pelos sentidos afeta o processo da criança no seu desenvolvimento. As cores, as músicas, os sabores, as brincadeiras, as simbologias, as imagens - tudo vai afetando e integrando o seu contexto à medida que se repete, à medida que é transformado em experiência”. lembra
Vivenciar o São João em família é fortalecer vínculos. É reafirmar quem somos. É carregar no corpo e na alma o que aprendemos celebrando. “As festas, na sua poesia, colorido e forma de expressar, falam de nós e representam nossos vínculos com a religião, com a família, amigos e grupos importantes para o convívio social.” afirma Clerton.
A trajetória de Vicente é feita de passos firmes e cheios de afeto: já dançou nas quadrilhas Fogueira da Paixão (Cascavel), Cheiro de Terra (Horizonte) e agora leva sua arte à Paixão Nordestina, de Fortaleza. Em cada grupo, uma nova família, um novo ciclo de entrega e criação coletiva.
“Dançar quadrilha me transforma. Reduz meu estresse, melhora minha autoestima, me dá confiança. O São João é, pra mim, saúde mental e emocional em forma de cultura. Me orgulho muito de ser do Ceará e de falar do meu Nordeste. A cultura junina me ensinou a valorizar minhas raízes e a ter segurança para falar sobre elas com verdade.” Vicente Melo;
Hoje, ao acompanhar Beatrice nas apresentações, revivo todas as emoções que senti. Ela já carrega o brilho nos olhos que eu tinha quando dançava - é natural, é legado. E agora, mais do que nunca, vejo que o São João se renova comigo e com ela, num ciclo que permanece vivo.
“A tradição está num tempo onde eu fui introduzido nesse lugar… você viveu experiências e guardou experiências”, diz Clerton. “A memória vira uma emoção, um sentimento. Está numa cor, numa melodia, que traz uma experiência que faz você sentir novamente aquela representação”.
É exatamente isso que sinto: pertenço à festa, e a festa pertence a mim. O São João permanece e com ele, permanecemos também. É um elo de memória, identidade e amor.
Quando o dançar vira diversão, o São João vira legado.