Vamos falar de culpa?

Segundo estudiosos, desenvolvemos a culpa na infância a partir das relações que construímos

Legenda: Consigo ficar em silêncio e observar as pessoas por muito tempo. Costumo dizer que, "quando o santo bate", abro meu coração com muita facilidade
Foto: Pexels

A culpa paralisa. A culpa me paralisou por anos. Ela interrompeu um processo de crescimento e amadurecimento. Mas antes de falar desse momento da vida, adianto que hoje a história é outra. Quem me conhece sabe como sou discreta. Não curto fotos, e tiro cada vez menos; tenho muitos colegas e poucos amigos, estes valiosos demais.

Consigo ficar em silêncio e observar as pessoas por muito tempo. Costumo dizer que, "quando o santo bate", abro meu coração com muita facilidade. Minha sorte é que, até hoje, não errei nessa escolha. Penso demais, penso além do futuro. Isso cansa. O cansaço vem da busca e do desejo de ser perfeita.

Hoje, sei que a perfeição não existe e que nem precisa existir. O que isso tem a ver com a culpa? Tudo. A culpa é um sentimento, que se constrói socialmente, e tem relação com padrões morais ou de conduta que entendemos ser necessários para atender às expectativas de terceiros - familiares, amigos.

Segundo estudiosos, desenvolvemos a culpa na infância a partir das relações que construímos com essas pessoas. Relações que nos moldam e nos guiam na forma como enfrentarmos o que gera desconforto e insegurança.

Durante 18 anos, fui filha única. Meus pais se separaram quando eu tinha 4 anos. Fiquei com a minha mãe, aqui em Fortaleza, onde nós três vivíamos juntos até então. Meu pai foi para o interior morar com os meus avós, onde estabeleceu a vida e segue até hoje. Desde criança, sempre temos momentos juntos nas minhas férias quando vou para lá. Ele não gosta da capital. Eu e minha mãe fomos morar na casa das irmãs dela. Estar sozinha, no que diz respeito à presença, e ser responsável por mim, a assustou.

Como mulher também divorciada, entendo um pouco o que ela sentiu, seus medos e angústias. Amo os meus pais e sei que fizeram tudo que podiam para garantir minha educação, minha criação, meu crescimento como pessoa. Sou imensamente grata por tudo. Mas sempre senti medos e angústias com muita intensidade.

Vivi culpa antecipada de quem estava ao meu redor caso algo desse errado no meio do caminho. Quando criança, sempre me cobrei para tirar boas notas na escola, ter bom comportamento. Não discutia, nem questionava, nem "olhava de lado" como diz o povo do interior. Respeitar era silenciar.

Fui ensinada a seguir regras do caminhar de uma vida. Primeiro estudar, depois se formar, casar, ter filhos. Isso era o correto. Tinha medo de sair desse caminho e ser julgada pelas pessoas que nem conhecia.

Meu sonho era ser psicóloga, mas iniciei o jornalismo por ter colocado como segunda opção de curso. Que bom que me encontrei e que, hoje, amo minha profissão e o que faço. Mas quando comecei a estagiar, tive medo e, por um instante, acreditei que não era o que queria. Mas tinha que terminar o curso mesmo assim. Não era certo parar no meio do caminho. No entanto, isso não era decisão minha.

Assim eu cresci: colecionando culpas. Culpa por não ter falado o que sentia em vários momentos da vida. Culpa por construir duas pessoas, quem eu era para o mundo e quem era para mim mesma. Culpa por deixar que esses medos impedissem uma vida mais leve, livre e escrita por mim.

Quando eu já estava decidida a seguir a vida assim, eu me tornei mãe. E aí aumentei minha lista de culpas. Não tive um pós-parto fácil. Chorava muito, dormia pouco, não produzia leite. Várias pessoas falavam ao mesmo tempo o que achavam e minha cabeça ia a mil por hora. Sempre sonhei em ser mãe e isso me faz muito feliz. Mas a maternidade me fez perder minhas identidades. Perdi a que tinha para o mundo e a que tinha para mim.

Em fevereiro de 2016, resolvi encarar a terapia, que sigo até hoje. Na primeira sessão, eu não consegui falar muita coisa. Só chorava. Me cobrava demais. E, num exercício rápido durante a sessão, tive que responder sobre as prioridades na minha vida. Naquele momento, meu filho foi a primeira. Me assustei quando percebi onde eu estava. Em último lugar. Apesar do susto, achava que a condição era "normal".

Sentia culpa pelas escolhas, decisões, desejos, pensamentos e ações. Como mãe, senti culpa muitas vezes quando desejei estar sozinha ou quando comecei a ficar feliz quando isso acontecia. Não entendia como a felicidade podia gerar culpa.

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Passei a entender com ajuda profissional. Uma lição importantíssima, mas um tanto desafiadora, principalmente para quem é mãe. Crescemos ouvindo "filhos em primeiro lugar", "obrigações em primeiro lugar". E nós, onde ficamos? Quando paramos para pensar sobre isso, muitas vezes nos descobrimos lá naquele último lugar.

Como entender a ordem inversa de que temos que olhar, primeiro, para nós e só depois para o outro, mesmo quando o outro é seu filho? Mas acredite, isso é verdade e faz toda a diferença.

Não é egoísmo. É a condição de uma vida feliz. Aprendi que, quando estamos bem, todos ao nosso redor ficam bem. O raciocínio não é complicado e faz sentido. Como transmitir felicidade quando estamos infelizes? O que acontece é que nem sempre é facil assimilarmos a teoria por motivos como dependências emocional e financeira, falta de coragem, apoio, suporte, medo de mudanças e de julgamentos.

Nada disso pode ser condutor das nossas vidas. Não podemos absorver experiências, traumas, satisfações de outras pessoas. Cada um com sua história. Não podemos sentir culpa por expressar sentimentos e priorizar vontades ou sonhos.

Não temos controle total da nossa vida. Somos imperfeitas. Podemos errar. E quando isso acontecer precisamos acolher e encarar esses erros. Não é fácil, mas necessário para não andarmos com o peso da infelicidade e da culpa. Precisamos romper com o ciclo da culpa que nos paralisa.

A culpa pode ser superada e, assim, permitir um aprendizado. O meu chega com a responsabilidade de buscar soluções, enfrentar o que me amedronta para ter uma vida plena. Chega também com a escrita de uma história diferente, mesmo que às vésperas dos 40.

Comece a escrever a sua nova história também. Nunca é tarde.